De onde estamos

As muitas camadas de fauna, de vida, de caos a partir de um olhar incapaz de desvendar o tsunami dentro de cada um
Detalhe do cartaz do filme “Playtime”, de Jacques Tati
04/05/2023

De onde estamos, vemos as janelas da construção ao lado e, dentro delas, suas vidas. São pessoas em camadas silenciosas. Ou melhor, são pessoas em camadas silenciadas pelos sons que não lhes pertencem. De longe, atrás de uma sequência de vidros, os nossos, os deles, um homem que não conheço e não gosto fuma na janela. Ele está sem camisa, visivelmente bêbado e emocionado com o que entendo ser um jogo de futebol. O time dele parece ter vencido ou ido bem ou, ainda, algum time de que ele não gosta perdeu ou foi mal. Tanto faz. Não gosto dele porque uma criança pequena lhe estendeu os braços e ele não a pegou no colo.

De onde estamos, vemos as janelas do vizinho que dorme no sofá. É outro sofá, é outro vizinho. É outro mas não é. São todos mais ou menos os mesmos quando vistos através das janelas.

Pergunto a filho o nome do filme do Jacques Tati. Aquele das janelas, eu descrevo. Ele tem um tradutor mãe-português embutido e responde rapidamente: Playtime. Recomendo.

De onde estamos, vemos também o espelho d’água da piscina vazia. Faz frio e o dia está acabando. O espelho d’água, sempre bonito, à espera de crianças, também tolera os turistas chatos que as acompanham. Ficaria ótimo com umas carpas. Pensando bem, eu acho que qualquer coisa fica melhor com peixinhos coloridos. Minha perna, por exemplo. Tatuo na perna a carpa que não posso levar na bolsa.

Ao nosso lado uma ciclofaixa por onde passam bicicletas, corredores, crianças, cachorros, patinetes, motos, uma charrete (sim, com um cavalo) e aquele skate motorizado cujo nome eu esqueci. Adoro essas camadas de fauna, de vida, de caos.

De onde estamos, vemos um casal no restaurante. Cada um com seu notebook. Estão em silêncio como nós. Nós dois não temos desculpas para o silêncio. Estamos só mesmo observando as pessoas à nossa volta e nas janelas. É quase como uma pescaria. A gente fica lá olhando o nada com um pretexto qualquer. Com o tempo, a vergonha desaparece junto com a necessidade de pretexto. Dane-se.

Alguém mexe na posição de um dos vidros e o reflexo se altera. É todo um novo filme que estreia. Gosto. Não ligo tanto para a atribuição de sentido, aceito o efeito Kuleshov que a vida me oferece.

Em outra janela, uma mulher penteia o cabelo. Fiquei com uma certa inveja. Normalmente ou eu estou com tanta pressa que considero qualquer forma capilar que duas passadas de escova conseguem, ou simplesmente desisto e prendo o meliante. Meu cabelo não é alguém em quem se possa confiar. A mulher ainda penteia o cabelo. Com calma. Acho que nunca, em nenhum momento da minha vida, eu tive essa calma. Ou usei essas drogas, sei lá, vai saber.

Pensando bem, se alguém nos observasse agora, não veria o tsunami dentro de nós e nos acharia calmos.

No espelho d’água dá para ver o reflexo da luz que nos ilumina pelas costas. Me passa pela cabeça fazer um coelho de sombra mas me contive. Já tenho fama de maluca o suficiente.

De onde estamos, vemos janelas e muitos futuros possíveis.

E isso é muito.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho