Casinhas

Quando uma cachorra exerce a sua capacidade crítica a respeito da decoração doméstica
Ilustração: FP Rodrigues
03/08/2023

Nina tem uma casinha de madeira. Nina comeu um pedaço da casinha de madeira. Estou muito em dúvida se moro com um cachorro ou o cérbero. Conto as cabeças e só vejo uma, mas sei que esse tipo de demônio sabe se disfarçar bem.

O meu primeiro pensamento é de construir uma casinha de alvenaria para ela. Nunca, jamais, em hipótese alguma, dar-lhe o esporro que merece.

Olho em volta, casinha de madeira pela metade e sofá destruído pelo mesmo quadrúpede. Não posso mais ter almofadas na sala. Penso na casa, nos móveis que sempre foram improvisados, herdados, reciclados ou uma mistura de tudo isso, e me dá uma certa gastura.

A última vez em que pedi um orçamento de estantes para os livros percebi o quão pobre eu sou.

Estou em uma fase da vida em que olhar preço de cooktop e modelos de estantes de livros é considerado um bom programa. O trabalho se acumula e eu aqui, no Pinterest, a única rede social de que eu realmente gosto.

Descobri que eu sou uma pessoa de terrários. Sim, eu sei que é uma coisa meio da moda, mas são as únicas plantas que Nina não consegue comer. O meu coentro, coitado, não quero nem lembrar.

A trilha de destruição é grande.

Por falar em destruição, vi Oppenheimer. Filmaço, vejam. Meu conselho que ninguém pediu, inclusive, é de ver mais de uma vez. A primeira, pelo impacto. A segunda, para pegar nuances, referências, citações e a construção de alguns personagens.

Nina não entende o cinema. Filmes, em casa, com pipoca e fazendo cafuné no cachorro, tudo bem. Cinema não entra cachorro, não pode ir de pijama, não tem pausa, não dá pra ver deitado e ainda por cima precisa calçar sapatos. Pfff, que grande bobagem.

Reparo que a TV está torta. Reparo mas não faço absolutamente nada a respeito porque, no fundo, eu não ligo.

Talvez, no fundo, a casinha de madeira seja uma metáfora. Nina está exercendo a sua capacidade crítica a respeito da decoração doméstica.

Ela veio morar em uma casa bem mais ou menos. Ela poderia ter tido melhor sorte, coitada.

Nina põe a patinha na minha coxa, por baixo do braço da cadeira de computador. Eu lá, firme, coração de pedra, me fazendo de forte, Nina, preciso trabalhar.

Ela dá uma choradinha. Quer passear.

Faço o que qualquer mãe faria nessa situação. Largo tudo e vou passear.

O Moodle, que não passa de mais uma casinha, pode esperar.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho