Amanhãs

Quando uma pessoa próxima morre, leva com ela o registro das memórias compartilhadas
Ilustração: Denise Gonçalves
28/09/2023

Amanhã, dia 29 de setembro, Michelangelo Merisi da Caravaggio, Miguel de Cervantes, Michelangelo Antonioni, François Boucher e minha mãe fariam aniversário. Os outros eu não sei porque deu preguiça de fazer conta, mas minha mãe faria 76 anos.

O maravilhoso Antes do silêncio, do Rogério Pereira (Dublinense, 2023), fala da iminência dessa perda. Eu nunca processei direito o antes-do-silêncio da minha mãe. A proximidade do livro do Rogério me impede de falar sobre ele. Dói demais. Mas leiam.

Quando uma pessoa próxima morre, leva com ela o registro — e, portanto, o repertório e o testemunho — das memórias compartilhadas. Não é exagero afirmar que é um pedaço da gente que morre junto. Porque é. E é preciso saber muito bem de si e do mundo para aguentar essa dilaceração de pé. Sim, insira aqui o discurso padrão a favor de terapia.

Separações afetivas são um tipo um pouco mais brando de morte. É uma morte Nutella. A pessoa ainda existe e, portanto, o testemunho também, em teoria. O compartilhamento, não. É como aquela pergunta da árvore que cai na floresta. Se esse testemunho é silenciado ou contorcido, há perda.

Uma das pessoas mais importantes da minha vida está passando por um divórcio agora. O futuro ex sempre foi o-marido-de. Quando não for mais isso, sairá completamente da minha bolha. Ou, ao menos, da minha vontade. É, portanto, para mim, uma pessoa Schrödinger.

Não entendo a obrigatoriedade que algumas pessoas se impõem em continuar uma amizade após uma separação. Ou em não continuar. Cada caso é um caso, as pessoas são diferentes, as feridas cicatrizam individualmente. Não tem nada de errado em não querer mais o convívio. Ou em querer. Ou querer só de vez em quando. Seu ex, suas regras.

Mantenho amizade com pessoas com quem quero compartilhar amanhãs. Esse é meu único critério.

Uma vez perguntaram para minha mãe como era estar casada com o mesmo homem há tanto tempo. Ela respondeu que não fazia ideia. Que devia ser chatíssimo. Ela não era mais a mesma. Ele não era mais o mesmo.

As pessoas, quando vivas, mudam. Só não muda quem já morreu. Ou quem está em uma redoma de vidro no museu, o que dá no mesmo.

Nunca mais esqueci disso. Deve ser chatíssimo realmente.

Feliz aniversário, mãe.

Esse silêncio é terrível.

Obrigada pelos amanhãs.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho