A vida imensa

Esse negócio de coisificar o outro ou tirar-lhe sua humanidade é uma tática antiga
10/12/2020

(10/12/20)

Tenho uma camiseta que diz “feminismo: a noção radical de que mulheres são pessoas”. Obviamente essa é uma questão que me é cara, mas não é a única. Negros são pessoas, gays são pessoas, trans são pessoas. Até mesmo escritores são pessoas, vejam vocês que incrível. Vida: a noção radical de que pessoas são diferentes.

Esse negócio de coisificar o outro ou tirar-lhe sua humanidade é uma tática antiga. Os conquistadores europeus fizeram isso com a gente. Indígenas e negros não tinham alma – não eram pessoas – e, portanto, poderiam ser escravizados. O nazismo também adota (queria muito colocar esse verbo no passado) essa política: judeus, negros etc., não são pessoas, são menos, são menores.

Pensadores como o Hannah Arendt ou o Norbert Elias estudaram esses fenômenos – mais e melhor – e merecem a sua leitura.

Do lado leigo da Força, lembro que a importância de classificar o outro como coisa tem algumas raízes psicológicas. Todas, em maior ou menor grau, penso eu, verdadeiras.

A primeira é óbvia: a isenção de culpa. É uma forma de se justificar por crimes cometidos porque se a vítima não era humana, o crime é menor. Considerar crimes contra animais, o ecossistema ou a economia como “menores” é outro absurdo, mas não vou falar disso agora. É o mesmo mecanismo que culpa a vítima de estupro, por exemplo. Ah, mas olha essa roupa, esse horário, esse lugar etc. Ou seja, se a mulher não é a mãe do cara ou freira, é menor, é mais coisa e menos gente.

A segunda é narcisista. O seu semelhante, ou seja, o seu espelho, é perfeito e, portanto, impassível. Seus erros são menos erros que os do outro. É o cara que sempre tem um bode expiatório para os seus problemas. Pode ser com quem se relaciona afetivamente, um familiar, o governo, um outro qualquer. É sempre o outro. O outro é culpável. Qualquer coisa diferente disso exige autocrítica e dói.

A terceira raiz é a necessidade de pertencimento. O sujeito não pode ver um clubinho que já quer entrar, fazer parte. O filme A onda explora bem isso.

O que me leva à questão da periferia.

Trato como “periferia” aqui tudo aquilo que não é central. Não necessariamente apenas a geográfica ou econômica. Falo também de uma periferia de posicionamento.

Então, na próxima vez em que você não conseguir algo que quer por não pertencer à panelinha, ao clubinho, por não ser “brother” de quem manda, lembre-se que isso fala bem de você. Pelo menos a meus olhos. Dos fortes, dos vencedores, dos brothers, eu quero é distância.

Vem, eu te quero fraco; vem que eu te quero tolo; vem, eu te quero todo meu.

Gosto tanto dessa música que doravante usarei essa música para dividir o mundo. De um lado, aqueles que queiram me mostrar as marcas adquiridas nas lutas contra o rei e nas discussões com Deus. Do outro, aqueles que não me interessam. 2020 é um ano radical. Sem tempo, irmão.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho