Tradução nas trevas

É a partir do lusco-fusco que o tradutor pode exercer seu ofício
Ilustração: Chris Mars (reprodução)
30/09/2017

A coruja de Minerva só levanta voo ao crepúsculo. É uma frase de Hegel, concebida para dizer algo sobre a filosofia. Frase que aqui aparece devidamente traduzida e retraduzida. A filosofia só nos explica algo sobre a realidade quando esta cumpre seu curso, ao fim do dia. A filosofia só se mostra no escuro, quando já poucos podem vê-la. O que pode servir à tradução essa frase, assim solta?

A coruja voa à noite, enxerga nas trevas. Olhar aguçado e cabeça giratória lhe dão visão ampla e precisa de seu entorno.

Uma frase solta — e traduzida — pode dizer muito. Ou, pelo menos, muito pode inspirar. O tradutor trabalha no escuro. A tradução só pode dizer algo sobre o original quando desce a noite. O tradutor trabalha nas sombras. À sombra do autor. Oculto e anônimo.

A coruja de Atena somente alça voo ao entardecer. A tradução só pode esclarecer o texto original quando este encerra sua jornada diurna. No silêncio e nas trevas trabalha o tradutor.

É a partir do lusco-fusco que o tradutor pode exercer seu ofício. Ave de rapina, bicho de mau agouro. Voa na noite. Enxerga no escuro. Vê onde todos nada veem. Entende o que outros não entendem. Desvela os sentidos de um texto em que outros não divisam mais do que um amontoado amorfo de palavras e letras.

A coruja de Palas Atena decola apenas ao cair da noite. O que quer dizer a frase de Hegel, assim transformada? Assim, fora de contexto, pode dizer muita coisa. O tradutor parte de um texto finalizado, que já percorreu todo o trajeto do dia. Ao mergulhar na noite, os sentidos pouco a pouco se ensombram, os limites entre as palavras vão se diluindo, os significados se vão individualmente apagando, mesclando-se uns aos outros em lento derreter. As trevas nivelam. As cores se confundem.

O tradutor mergulha nas sombras do passado. Busca sentidos já gastos. As cores já gastas. O texto-cadáver que se decompõe. As frases soltas, fora de contexto. A coruja ali enxerga ainda. Gira a cabeça, olha em volta, aguça o olhar. Busca a presa desatenta. Acha o sentido fugidio.

O tradutor reconstrói. Precisa reconstruir. É pago para isso, mesmo que mal pago. Há que ressuscitar o cadáver. Há que testar até onde se estende sua perícia, sua agudeza de visão, sua agudez de pensamento. Deslembrar o que o texto espelhou durante o dia. Perscrutar seu lado oculto, que é o que lhe resta e a matéria toda que lhe cabe trabalhar.

A coruja de Minerva só alça voo ao pôr do sol. A frase solta é matéria maleável. A coruja também assusta. Mau agouro. Só age à noite. Evita a luz. À noite, o texto já gasto e sombreado permite múltiplas interpretações. Cabe ali toda desmesura; e até toda ilusão, toda imaginação, que também pode ser medo. Especialmente à noite.

Ao tradutor sobra o medo do erro, por também voar somente no escuro. Sem o olhar arguto da coruja, sem seu pescoço giratório. O olhar preso ao texto; a mente devaneia. Estará certa sua interpretação? Será corretamente compreendida sua interpretação? Será justamente apreciado seu esforço? Serão valorizados seu voo sem instrumentos e o pouso forçado em pista precária?

Mas a coruja de Atena, como se diz, só voa às parcas luzes do poente. Transpondo livremente a frase solta, diríamos que a tradução só se insere no texto quando este se encontra em seu ocaso. Para dar-lhe vida, talvez. Para iluminar as trevas. Para, com luz fraca de lanterna, catar os cacos de sentido e soprar-lhes alento. Novo alento que animará uma nova leitura.

A coruja de Minerva só se levanta de sua letargia quando descem as sombras. Assim, em nossa solta transposição, a tradução só se ativa quando ao original lhe faltam luzes. Quando não faltem luzes ao tradutor.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho