Os limites da máquina

Quantas funções humanas já não foram substituídas pelo trabalho da máquina?
30/10/2019

A inteligência artificial avança rápido. Avança sobre todos os campos, dominando, transformando, derrubando. Avassaladora. Difícil prever seus limites. Os limites da máquina e sua influência sobre o homem. E sobre a tradução.

Quantas funções humanas já não foram substituídas pelo trabalho da máquina? Quantos empregos perdidos? E outros tantos criados? A revolução não se detém.

Antes, a máquina operava apenas na realização de tarefas mecânicas. Era a máquina na linha de produção, nas fábricas, na área de manufatura. Agora, vem se insinuando em tarefas associadas à criatividade. Invade o campo da arte. Música, pintura, desenho, cinema. Criações textuais. Literatura.

Já não é fácil hoje diferenciar uma música criada por computador, ou um quadro pintado por um robô, de uma obra de arte genuinamente humana. A máquina bem programada atinge níveis de sofisticação impressionantes.

Por que não na tradução também? A tradução, que se situa no espaço literário entre a arte e a transcrição, vive também a invasão da máquina.

A internet amplificou muito o alcance da tradução automática. A rede está cheia de textos traduzidos por computador. Não é difícil reconhecê-los, pela estranheza que provoca no leitor atento e algo conhecedor das línguas. A máquina deixa rastro. A marca da máquina.

Diferentemente do que acontece em algumas das artes (pintura, música), ainda é possível identificar, com elevado grau de certeza, um texto literário traduzido por computador. As falhas são muito visíveis. A possibilidade de comparação com um texto produzido por humanos facilita bastante essa identificação. No campo da arte pura, a base de comparação é demasiado fluida, o que torna essa identificação muito mais complexa.

Hoje, o texto traduzido é bastante imperfeito. A máquina não consegue sequer fazer todas as associações necessárias à plena compreensão do texto literário — primeiro passo para sua tradução. O número de variáveis é grande demais para a máquina. Mesmo sendo perito em manipular números, o computador não consegue conjugar, como faz a mente humana bem treinada, a multiplicidade de elementos que entram na confecção de uma tradução.

Ainda assim a tradução automática tende a evoluir. Parece ser essa a marcha inexorável do progresso. Talvez a evolução seja rápida, talvez claudique. Mas não há dúvida a respeito do avanço da máquina sobre o campo da tradução humana.

Para traduzir bem, segundo os padrões humanos, a máquina deverá pensar como um ser humano. Ruminar com todos os nossos defeitos, nossos erros, nossos pensamentos tortos. A partir disso, poderá surgir a criatividade, que é requisito para a tradução literária. Aí sim teremos traduções literárias à altura do ser humano, traduções que atendam nossos critérios de qualidade.

 No fim das contas, a pedra de toque, o tira-teima da verdadeira inteligência, não será a arte nem a ciência exata, mas a tradução.

Veremos então o encontro entre o ser humano e sua maior criação, o robô pensante. A máquina capaz de intenção, de vontade. Capaz de fazer o que quer, mas, principalmente, como nós, capaz de fazer o que não quer — e de cogitar o porquê disso.

E quando a máquina conseguir emular o pensamento humano, seremos afinal deuses? Teremos realmente criado algo à nossa imagem e semelhança? Não será então o momento de expulsar a máquina do paraíso?

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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