Mil e uma noites (2)

As traduções mais “literais” do clássico árabe, segundo Jorge Luis Borges
Jorge Luis Borges, autor de “Ficções”
02/08/2022

Volto à história da composição e da tradução de As mil e uma noites, com base em ensaio de Jorge Luis Borges incluído em seu livro História da eternidade. Nesta segunda abordagem ao texto de Borges, comento as traduções por ele consideradas como mais “literais” — ressalvando, como ficou dito na coluna anterior, que a literalidade é mais narrativa do que realidade.

Borges considera como mais “literais” as versões de Edward Lane (para o inglês, 1839), Richard Francis Burton (para o inglês, 1872) e Enno Littmann (para o alemão, 1928). Cada qual, como veremos, com seus matizes de liberalidade.

A tradução de Edward Lane pode ser tachada de “literal expurgada”. Conforme Borges, a tradução de Lane omite sistematicamente supostas indecências do original, empregando notas de caráter moralista. E mais: as omissões não alcançam apenas partes dos contos, mas às vezes contos inteiros, “porque não podem ser purificados sem destruição”.

Borges aponta como única falha da tradução de Lane seu excesso de pudor: fora isso, “é de uma admirável veracidade”. Outra característica da tradução de Lane é o acúmulo de notas, as quais, segundo Borges, “integram um volume independente”. Conforme o escritor argentino, o “escandaloso decoro” da versão de Lane significou uma espécie de “desinfecção” das Mil e uma noites, mas não representaria “uma culpa dessas que o Senhor não perdoa”.

O texto de Richard Burton, segundo o autor argentino, tem como uma de suas características a decisão de traduzir em versos as centenas de canções e dísticos que figuram nas Mil e uma noites. O procedimento aproxima a tradução do original, sem dúvida, mas com uma ressalva borgiana: contradiz a intenção de total literalidade do tradutor, considerando que a versão de poesia tende a ser mais “livre”.

A favor da “literalidade” de Burton destaca-se outra característica de sua tradução: o farto uso de neologismos e estrangeirismos — que tendem a indicar maior apego ao original. Na avaliação de Borges, “Cada uma dessas palavras deve ser justa, mas sua intercalação implica um falseamento. Um bom falseamento, já que essas travessuras verbais — e outras sintáticas — distraem o curso às vezes abrumador das Noites”.

Contra a suposta “literalidade”, o autor argentino suscita o fato de que Burton “reescreve integralmente — com acréscimo de pormenores circunstanciais e traços fisiológicos — a história inicial e o final”. Não parece pouco desvio para uma versão que se arvora literal.

A última tradução que abordamos aqui é a de Littmann. Assim como Burton, o tradutor alemão translada em verso ocidental os versos árabes e oferece notas suficientes, embora lacônicas, para a compreensão do texto.

Como aspecto positivo, o ensaísta argentino aponta sua total franqueza: “Não o intimidam as obscenidades mais inefáveis; verte-as a seu tranquilo alemão, alguma rara vez ao latim. Não omite uma palavra, nem sequer as que registram — 1000 vezes — a passagem de cada noite à subsequente”.

Por outro ângulo, Borges a considera como “literal medíocre”, por ser Littmann “sempre lúcido, legível, […] incapaz como Washington de mentir”. O escritor argentino insinua esperar muito mais dessa tradução ao alemão: “Que não faria um homem, um Kafka, que organizasse e acentuasse esses jogos [os prodígios constantes das Mil e uma noites], que os refizesse segundo a originalidade alemã, segundo a Unheimlichkeit da Alemanha?”.

Borges, como escritor genial, valoriza muito mais os arroubos da inventividade, mesmo que infiéis, do que a mera tentativa de versão transparente, mas insossa.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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