Intersemiótica tradução

Para o tradutor, a composição texto-ilustração potencializa a complexidade do trabalho, pois precisa capturar os sentidos da interação entre letra e desenho
Dalton Trevisan, autor de “Macho não ganha flor”
01/06/2025

Já mencionei aqui neste espaço, mas apenas brevemente, aspectos da tradução intersemiótica — também chamada “interartes”. Eis aí uma lacuna a preencher. Trata-se de uma vertente importante do que chamamos tradução. Elementos desse tipo de versão têm implicações especialmente relevantes para as artes e a literatura, em razão da natural imbricação entre imagens e textos nessas searas.

Tradução intersemiótica ou “transmutação”, conforme o linguista russo Roman Jakobson, é a interpretação de signos verbais por meio de signos de sistemas simbólicos não verbais.

Extrapolando, podemos inserir nessa definição um “e vice-versa” e, avançando ainda mais, um elemento de interferência mútua. É o que faz, de fato, Altair Pivovar no prefácio à obra Poty Lazzarotto & Dalton Trevisan: entretextos, de Sônia Gutierrez, ao analisar o diálogo entre letra e desenho: “Discursos concomitantes, vozes alinhadas como em coro: longe de serem apenas dois modos diferentes de dizer a mesma coisa, textos e imagens, simbiontes, instilam-se mútuos sentidos”. Mais do que tradução: novas produções de significados, nos dois sentidos.

Sônia Gutierrez nos traz um sem-número de exemplos de transmutações e interferências na relação artística Poty-Dalton, com insights instigantes sobre as perturbadoras conexões entre escrita e imagem.

As conexões são perturbadoras porque, segundo Gutierrez, Poty não busca somente traduzir o texto em desenho, não aceita subordinar-se à expressão verbal. Suas ilustrações-transmutações geram novos significados, claro, mas esse fato em si não é estranho ao processo tradutório em geral. O que nota a autora é que Poty vai além, chegando a contradizer Dalton em alguns casos e, assim, “conquistando, pela ambiguidade, mais autonomia para as ilustrações, tornando a obra mais interessante”.

Trata-se de um processo claramente diferente da tradução interlinguística, por verter aspectos limitados do texto em outro código e, sobretudo, por deliberadamente acrescentar significados não exatamente presentes no original, mas inspirados neste — ainda que o contradigam.

A autora considera que, ao ilustrar o texto de Dalton, Poty atua como “receptor sui generis da obra literária”, fundindo nos desenhos suas percepções do mundo daltoniano com aquilo que lhe sugere a própria imaginação inventiva e, aliada a esta, a memória de uma longa carreira e de sua frequente interação com o escritor. É um conjunto de elementos que, transformados em ilustração, conjuram novos sentidos e provocam no leitor reflexões novas e mais profundas sobre o texto.

Antonio Houaiss, citado na obra de Gutierrez, sintetiza bem essa operação tradutória/extrapolativa que realiza Poty a partir do texto literário: “nunca um ilustrador, entre nós, foi tão capaz de dizer o que as palavras não sabiam ou não podiam”.

O leitor se vê diante de um painel artístico complexo, em que texto e ilustrações interagem, se complementam e se modificam, projetando sentidos e imagens que não surgiriam, isoladamente, de apenas um dos dois meios.

Para o tradutor, essa composição texto-ilustração representa elemento adicional de complexidade, pois a versão — supondo um trabalho sofisticado, que mantenha as imagens e sua posição original — deverá capturar não apenas os sentidos que a escrita delineia, mas aqueles que propõe a interação entre letra e desenho. É um desafio a mais, que pode gerar versões mais criativas e completas, além de abrir espaço, em pé de página, para algumas boas notas do tradutor.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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