Avalovara

A tradução figura como elemento instigante no romance de Osman Lins, que traz várias menções a respeito da indocilidade da linguagem
Osman Lins, autor de “Avalovara”
01/09/2021

Avalovara, a ave, é uma obra peculiar de Osman Lins, com arquitetura formal construída em torno de uma frase em latim — Sator arepo tenet opera rotas —, palíndromo perfeito de significado discutível na realidade, mas revelado na ficção. A arquitetura acompanha a distribuição de cada letra da frase num quadrado composto por 25 quadrados menores e riscado por uma espiral. Os capítulos do livro seguem lógica vinculada à rotação das letras, marcada pela passagem da espiral pelo quadrado.

O sentido da sentença — a qual figura no histórico “quadrado Sator” — perdeu-se com o tempo, mas, na ficção, é de “grande clareza” para os contemporâneos de seu autor, escravo frígio de Pompeia. Ainda assim, contém um mistério, uma ambiguidade, pois se pode entendê-la como “o lavrador mantém cuidadosamente a charrua nos sulcos” ou “o lavrador sustém cuidadosamente o mundo em sua órbita”. Um significado prosaico e outro de caráter místico, para livre escolha dos habitantes de uma Pompeia fictícia. Para o tradutor, o eterno flagelo da ambiguidade.

A tradução figura como elemento instigante, embora em segundo plano, na obra de Osman Lins. Não apenas a frase latina que sustenta o livro é objeto de tradução ambígua ou discutível — conforme se vincule à ficção ou à realidade —, mas há várias menções, esparsas pelo texto, sobre a indocilidade da linguagem e os labirintos da tradução. O disco de Festo, por exemplo, surge como um símbolo da impossibilidade da tradução e da teimosa sobrevivência do mistério.

Outro elemento que nos interessa, aqui, é percorrer as reflexões sobre os desvãos da linguagem, as inconsistências desta com a realidade e o papel da tradução como intermediário.

O conceito de palimpsesto figura ali como metáfora da evolução genética que gera a peculiar personagem sem nome, duas vezes nascida — um dos aspectos curiosos do livro. Seu corpo se transmite como um texto, “reescrito inumeráveis vezes, reescrito, apagado, perdido, evocado, novamente escrito e reescrito, uma oração clara, antes familiar, tornada enigmática à medida que transita, em silêncio, de um ventre para outro, enquanto a língua original se desvanece”.

O texto se confunde com a vida e, em parte, a determina, modificando a percepção da realidade, conforme o protagonista Abel: “Como escapar a este resíduo irracional que me induz a ler nas coisas, onde tantas vezes penso decifrar […] representações da minha vida, textos, grafados numa escrita esquecida e nos quais, entretanto, identifico o meu nome?”

E novamente Abel aponta a essencialidade do texto como substrato da vida e como elemento anterior ao que se acaba de fato falando ou escrevendo: “Os textos, de certo modo, existem antes que sejam escritos. Vivemos imersos em textos virtuais”.

Da mesma forma, o autor recorda a efemeridade do texto e sua fragilidade ante à passagem do tempo: “[…] escritor, entregue à obrigação de provocar, com zelo, nos sulcos das linhas, o nascimento de um livro, durável ou de vida breve, de qualquer modo exposto — como a relva e os reinos — aos […] cavalos galopantes”.

Aspectos da tradução atravessam a obra, assim como a espiral cruza o quadrado. Abel reflete sobre um poema que uma de suas amantes declama em francês, revelando ao mesmo tempo a força atemporal da tradução: “Assim, a sombra de um lírico grego [Anacreonte], vertido […] por um tradutor do século 18, lido por mim numa edição de mil setecentos e tantos cheirando a fumo e a vestidos velhos, […] fala pelas nossas bocas a dois milênios e meio de distância e estabelece entre nós um liame provisório, mas não frágil”. Liame provisório e resiliente como uma tradução.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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