Morte e ficção

Ficcionistas iniciantes e mesmo profissionais estão sempre com a morte da personagem como uma tentação atrás da porta: “Se tudo der errado, eu a mato”
Ilustração: Tereza Yamashita
01/08/2021

1.
Como fenômeno geral e individual, ela está ali, a dois passos, mas essa é uma consciência que se adquire no transcorrer da existência. De início, nos preocupamos com o futuro; a partir da meia-idade, com o tempo e, na velhice, com a morte que, como diz o aforismo, mais perto está quanto mais tarda. Há meios de eludi-la, ao menos no plano retórico: Heidegger, em Sein und zeit estabelece um delicioso sofisma, que consiste em situá-la no plano impessoal — “morre-se” — e, claro, não nos incluímos nessa generalidade. “Morre-se” é bem mais apaziguador do que “eu morro”. Ademais, não existe uma relação lógica entre o fato de que todos tenham morrido até agora e uma hipotética morte pessoal. Em outras palavras: pelo fato de que todos tenham morrido não significa que eu vou morrer também. Já Sartre, para ficarmos na mesma linha filosófica, dizia que, para ele, a morte não preocupava, porque “enquanto eu viver, ela não existe; depois que eu morrer, ela não existirá igual”. Na verdade, o autor de L’Être et le Néant preocupava-se mais com o sentido da vida, e, com isso, afastava o problema. Como se percebe, o ser humano tem imensa dificuldade em lidar com esse fenômeno tão naturalmente fisiológico quanto incontornável.

2.
Para dar conta desse drama, a cultura elaborou inúmeros constructos intelectuais, os quais se somam no decorrer dos séculos, e aí começamos com a religião e suas esperanças e chegamos à literatura e seus despistes. Jorge Luis Borges, em El sur, sintetiza a dor da consciência da morte na cena célebre em que Juan Dahlmann, depois de ter sobrevivido a uma septicemia, acaricia um gato, esse mágico animal que vive en la actualidad, en la eternidad del instante, invejando-o na sua inocente inconsciência do fim. Mas até chegarmos aí foi um longo percurso. Se a arte vive pela produção de bens simbólicos acessíveis a quem a recebe e interpreta, a literatura não haveria de ser diferente. O passo temporal entre os desenhos nas cavernas e a erudição do bibliófilo e autor argentino constitui-se num imenso parque de diversões em que encontramos de tudo, e a morte é a maior constância.

3.
Na Antiguidade literária, e mesmo nos séculos seguintes, até o século 19 inclusive, a morte era o fim natural das personagens centrais. Morriam porque deveriam morrer — seria insuportável para o leitor não saber o que aconteceu com seu herói depois do fim do livro. Terminava a história, terminou a vida. Afinal, essas personagens viviam uma aventura única, irrepetível, e, morrendo, morriam junto todas as inquietações que geraram a história. Uma personagem que seguisse vivendo constituía-se numa perturbadora extravagância; significava que seus dramas não teriam findado, enfim: elas permaneceriam à solta, num vazio ontológico com seu quê de fantasmático. Seria inconcebível que Aquiles sobrevivesse, perambulando por um mundo que já não seria o dele. Homero não o matou na Ilíada, mas outros fizeram isso por ele: Aquiles morreu e, como se sabe, com uma flechada em seu calcanhar. Morreram também Antígona, Hamlet, D. Quixote, Julieta, Romeu, D. Juan, Fausto, Werther, Mme. Bovary, Capitão Ahab, Ivan Ilitch, para falar em alguns dos mais famosos — e sem entrar nos séculos 20 e 21.

4.
No século anterior e neste, a conduta autoral e o próprio público passaram a considerar a morte no final como uma espécie de solução deus ex machina, salvo raridades em que isso acontece de maneira literariamente justificada, e aqui podemos lembrar da Macabéa e de personagens centrais que estão em romances nos quais o tema é a morte ou, mais comumente, o suicídio. Portanto, suas mortes são cruciais nessas ficções. O século 20, herdeiro de Freud e epígonos, já prefere encarar a circunstância de que um conflito, por sua universalidade e permanência, persistirá na cabeça do leitor mesmo — e principalmente — após o fim do romance, sendo irrelevante se a personagem central morra ou siga viva. Em O grande Gatsby, Jay é assassinado em sua piscina enquanto meditava na grande tristeza de julgar-se abandonado por Daisy. Seu assassino tem motivações que não chegam a manter uma ligação direta com o drama de Jay; foi quase um equívoco. Justamente essa morte é objeto de discussão de alguns críticos de Scott Fitzgerald, que a acusam de artificial. Já a morte de Macabéa, igualmente aleatória, tem pleno sentido, uma vez que sua vida, tal como nos mostra Clarice, tem uma consistência orgânica no todo que é a novela, que, assim, parece ser escrita para conduzi-la a esse final.

5.
Ficcionistas iniciantes e mesmo profissionais estão sempre com a morte da personagem como uma tentação atrás da porta: “Se tudo der errado, eu a mato”. Claro, é uma tentação a que, em geral, ficcionistas amadores não resistem, por viverem em Marte; já os outros, esses, resistem. E resistem porque conhecem a perspicácia dos leitores atuais, que não aceitam mais essa solução banal, ligados que estão à personagem, ao conflito e seu desenvolvimento, mais do que ao final do romance. Digamos: o final, nesse contexto, acaba por ser uma preocupação amadora. Jay Gatsby poderia não ter morrido; alguém o teria avisado das intenções assassinas de George Wilson e voilà: teríamos o romance sem o defeito original que alguns lhe atribuem.

6.
Quem começa um romance não comete a loucura de ignorar o que vai acontecer nele, assim como um diretor de cinema não inicia a filmar às cegas, nem o engenheiro começa a construção sem ter o projeto arquitetônico, nem o piloto não decola seu avião sem ter seu plano de voo. Os negacionistas do planejamento do romance alegam que não é necessário pensá-lo previamente, e os resultados são bem visíveis. Mas bem, e agora falando ao iniciante: ao pensar previamente o romance, você naturalmente pensará no final, para não o deixar ao acaso, e isso é muito bom; uma sugestão, apenas: afaste desde logo a morte da personagem. Seu romance sobreviverá e será melhor, e por quê? Ao excluir a morte, você terá de dar intensidade e consistência à sua personagem para que ela siga vivendo por si mesma e com sua questão essencial, e que a deixaria em tese disponível para criar outros enredos. Se você, por essa razão, der consistência e intensidade à sua personagem central, está implícito que escreverá um bom romance — sem matar a personagem que, afinal é criatura sua, que você criou com toda sua vocação e empenho. Não que a personagem seja um ser vivo, mas deve comportar-se como tal e, por certo que a morte não está em seus planos.

7.
Para encerrar: dentre todos e variados dramas pessoais, a morte é o único compartilhado absolutamente por todas as pessoas. No domínio da literatura — e porque em geral são pessoas sadias que escrevem — ela serve para que a auscultemos de longe, inclusive fazendo nervosas brincadeiras para enganá-la, como esta que se lê no D. Quixote: um tal de Ginés de Pasamonte disse que tinha um livro de sua autoria, cheio de episódios, chamado de “A vida de Ginés de Pasamonte”. D. Quixote lhe pergunta se o livro já está acabado. A resposta: “¿Cómo puede estar acabado […] si aún no está acabada mi vida?”.

Luiz Antonio de Assis Brasil

É romancista. Professor há 35 anos da Oficina de Criação Literária da PUC-RS. Autor de Escrever ficção (Companhia das Letras, 2019), entre outros.

Rascunho