Clichê

É preciso relativizar a tirania do clichê, não se entregando sem crítica a ele, mas tendo consciência de que existe e pode tornar o texto menos eficiente
Ilustração: Thiago Lucas
01/09/2021

1.
Terror dos iniciantes, preocupação dos profissionais, parque de diversões dos amadores, o clichê está incluído nos ingredientes a serem evitados numa boa dieta literária. Antes dizia-se “lugar-comum”, mas com o tempo firmou-se, no idioleto da escrita criativa, a denominação francesa que, de resto, é pronunciada com o mesmo sentido em diferentes culturas, e sempre num misto de vergonha e acusação. Os negacionistas exercitam a fantasia de que não há mal nenhum em praticá-lo à vontade, pois o povo não se preocupa com isso e, portanto, eles não recorrerão a nenhum artifício para evitá-lo, aguardando que seu uso resulte em aceitação geral.

2.
É preciso separar as águas para avançarmos. Em primeiro lugar, há os clichês de expressões, talvez os mais visíveis, e aí há uma lista enorme: chuva torrencial, sorte madrasta, rio caudaloso, olhar penetrante, testa ampla, gesto largo…, e uma lista que está a todo momento sendo atualizada e aumentada. Pessoas menos lidas — escritores amadores, em especial — costumam praticá-los, porque toparam com “gesto largo” em algum livro, acharam bonito e o usaram, sem se darem conta que “gesto largo” consta em milhares de outros livros. Eis aí mais um dos malefícios da pouca e não seletiva leitura. Isso vale também para os clichês mais sofisticados, de origem erudita e pouco uso, como “os dedos róseos da Aurora”, ou “cochilo de Homero” e mais uma listinha de supermercado; quem os usa acha que não serão percebidos — mas sempre há quem os note, e está feito o estrago.

3.
Em segundo lugar, há os clichês de situação narrativa, que aparecem não só em textos escritos por amadores, mas também de iniciantes e, talvez em menor medida, profissionais. Vamos encontrá-los igualmente no cinema, principalmente nas séries. São muito sutis, mas passam ao leitor letrado a sensação de coisa já lida e, portanto, causam desconforto pela previsibilidade das ações seguintes. Quem já não leu [ou viu no cinema] a situação de um homem que abre a porta do carro, a qual vai de encontro a uma mulher que vem carregada de pacotes? Que acabem num motel ou no apartamento dele, ou mais recentemente, no dela, é natural. E desencanta o leitor pela falta de novidade. Quem já não leu o momento em que a personagem, depois de um pesadelo, acorda sobressaltada, lavada em suor? Quem já não leu a situação de um velho [sempre há um velho meio caduco em qualquer história], de chinelos, resmungando pela casa, ou de uma personagem indo à janela [as personagens têm uma atração diabólica por janelas], ou um Pedro [sempre há um Pedro nas histórias — ou uma Alice]? Vamos incluir aí os itens-clichês: espelho, fotografias antigas, baú no sótão, esconderijos infantis, gozação de colegas de aula, avó que faz bolo de chocolate, tio excêntrico e solteiro que encanta os sobrinhos, personagem claustrofóbica presa no elevador, porta emperrada, carta anônima, carta amarelada, médico que dá más notícias, professora de coque, professora de óculos, caixinha de música, geladeira com apenas um pote de margarina vencida, fina porcelana, escada rangente, ônibus que não chega, e assim iríamos até o fim desta coluna.

4.
Em terceiro lugar, há os clichês de enredo, e eis aí um terreno minado. Desde o famigerado livro A jornada do herói, que vale pelo excelente exercício analítico de Campbell sobre antigos mitos e lendas, e de seu epígono A jornada do escritor, de Christopher Vogler, assanharam-se escritores amadores e iniciantes a consultarem uma pretensa mina de inspirações, com resultados pouco menos que catastróficos. Funcionou bem em alguns ficcionistas que, justa e explicitamente, desviaram-se dessas “jornadas”, quer dizer: verificando quão precárias eram, deixaram aflorar sua criatividade para subvertê-las, criando algo novo, e assim a literatura agradece.

5.
Diz-se que, em matéria de enredos, pouco há a acrescentar ao clássico Les 36 situations dramatiques [digamos: “36 situações dramáticas”] de Georges Polti, de 1895, e eis algumas delas, que correspondem a títulos de capítulos [traduzo]: “Sendo vítima de crueldade ou infortúnio”, ou: “Recuperando algo perdido”, “Obstáculos ao amor”, “Remorso”, “Julgamento equivocado”, “Rivalidade entre superior e inferior”, “Adultério”, etc. — e tudo com exemplos. O bom gosto e o bom senso não impedem de usá-las, em absoluto, pois, de uma forma ou de outra, todos os romances trilham esses caminhos, e aí está Mme. Bovary no segmento “Adultério”; boa parte dos atuais romances em primeira pessoa, plenos de autovitimização, incidem no “Sendo vítima de crueldade ou infortúnio”. Quer dizer, não há escapatória decente. Quase tudo está lá.

6.
Veja-se o caso do Kishotenketsu, das literaturas asiáticas, que opera com um esquema estrutural-narrativo fixo: apresentação de uma situação inicial [ki]; desenvolvimento e alargamento dessa situação [shō]; reviravolta, em que tudo muda [ten]; conclusão, com mudança ou repetição da situação do início [ketsu] — esquema que muitos ocidentais consideram um clichê, mas com o qual foram e são escritas obras-primas e é bastante utilizado nos mangás, além de estar presente nas lendas de todas as longitudes; e quanto aos enredos repetidos [as situações de Polti] que, em certo sentido, podem ser considerados clichês, o que faremos? Nada. Isto é: temos de criar nossa história não pensando nisso, mas — eis o pormenor relevante — será necessário dizer de maneira nova. Em arte, não importa o quê, mas o como.

7.
Agora, falando com iniciantes: o clichê puro, de expressões [parágrafo 2] ou de situações narrativas [parágrafo 3], qual o problema em usá-lo? Ele é evitado não porque é feio, não porque é brega [e é brega], mas, sim, porque instaura uma abstração no texto. E tudo que é abstrato o leitor “não lê”, isto é, os olhos apenas passam por cima e não penetra na consciência. Se, em vez de escrever “fez um gesto largo”, dissermos “fez um gesto que incluía todo o restaurante?; se, em vez de o homem derrubar os pacotes da mulher, um amigo programar o encontro dos dois, com segundas intenções? Essas alternativas gravam na cabeça do leitor, e por quê? Porque, possivelmente, ele ainda não havia lido nada muito parecido. E por que deve gravar na cabeça do leitor? Para que ele acompanhe o enredo com interesse. E não é isso que todo ficcionista quer?

8.
Tentando resumir: é preciso relativizar a tirania do clichê, não se entregando sem crítica a ele, mas, sim, tendo consciência de que existe, e que pode tornar nosso texto menos eficiente. É preciso vencer a preguiça, ir à busca de soluções criativas e originais. O primeiro passo é identificar os clichês, e para isso é preciso ter muita leitura; o segundo, substituí-los. Dá trabalho? Nos primeiros tempos, sim e muito; mas, depois, esse cuidado torna-se natural, e estaremos evitando os clichês sem nos darmos conta disso. É o lugar-comum da bicicleta: depois que se aprende, pedalar é hábito. O resto, que vem a ser tudo, é observação, imaginação e sensibilidade, nada menos do que se espera de um ficcionista.

Luiz Antonio de Assis Brasil

É romancista. Professor há 35 anos da Oficina de Criação Literária da PUC-RS. Autor de Escrever ficção (Companhia das Letras, 2019), entre outros.

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