A voz autoral

A busca pela singularidade literária passa pelo estilo, mas também por algo mais complexo, como as concepções epistemológicas e morais do autor
Ilustração: Paula Calleja
01/10/2021

1.
É complexa a afirmativa de que, em qualquer história, há um narrador que a escreve, uma entidade fantasmática, situada nos calabouços da criação. Fomos levados a decorar um rol confuso e disperso de categorias dessa instância misteriosa — cada teórico com a sua taxionomia — e, em boa parte das vezes, sem utilidade visível para a aproximação e exegese da obra literária. Aliás, [Tzvetan] Todorov já se dera conta disso, como se vê em A literatura em perigo, um livro recomendável por sua lucidez e simplicidade.

2.
Quando se trata de criação literária, em que não podemos nos entregar ao luxo da perda no cipoal de conceitos, nisso gastando tempo e energia, é preferível, como já foi dito noutra coluna, trabalhar com a ideia de focalização, uma conquista de Gérard Genette que sugere uma divisão tripartida: focalização onisciente, interna e externa. Essa leve simplicidade torna-se poderoso instrumento para quando, em sala de aula, temos de falar a mesma linguagem e não só: quando, por exercício, queremos propor a escrita de narrativas em que é útil que se conte uma história sob diferentes perspectivas — visando, com isso, provocar competência para as experiências narrativas individuais, que fazem a literatura conquistar novos meios expressivos. Isso, como se sabe, é matéria bem conhecida, tanto no meio acadêmico, como fora dele, não sendo estranha, portanto, a qualquer pessoa que circula pela vida literária.

3.
Caberia, agora, ver o assunto da voz autoral. Do ponto de vista semântico, esse sintagma é plurivalente, e tanto pode expressar o estilo, o modo próprio de expressar-se, como pode tratar-se de algo mais complexo, como as concepções epistemológicas, morais, etc., do autor.

4.
A voz autoral, no primeiro sentido enunciado no parágrafo acima, significa as idiossincrasias expressivas, os cacoetes, os idioletos de cada qual, e se processa no plano da linguagem, tanto no léxico como na sintaxe. Aqui é o domínio dos modismos, dos neologismos, da gíria, que os autores não se acanham em usá-los, a bem da maior veracidade e permanência na sua zona de conforto estilístico. Assim, um leitor letrado é capaz de dizer, lendo um texto sem indicação de autoria, “Isso é Machado de Assis”, “Isso é Graciliano Ramos” — quer-se dizer: vêm a superfície todos os indícios identificadores, que nem sempre podemos identificar cabalmente, mas que “sentimos” com nosso faro literário.

5.
Esse modus não é buscado, mas acontece com o passar dos anos de escrita, incorporando-se à massa crítica dos recursos do autor, assim como o sapato adapta-se ao formato do pé de quem o calça. Não é exatamente o mesmo, mas sem muita heresia teórica seria possível pensar em “estilo próprio”. E quanto já se padeceu na escola por causa do “estilo próprio”! — frequentemente confundido com certo estilo floral, essa catástrofe que ainda mantém suas marcas no modo de escrever de algumas pessoas mais velhas. Quanto dicionário, quantos sublinhados nos textos ditos “exemplares”, quanto sofrimento jogado fora! Mas é melhor simplificar e esquecer esse tema: a voz autoral, no caso confundida com “estilo próprio”, é coisa com que ninguém deve preocupar-se, pois este vem tão naturalmente quando o dia se segue à noite. Basta que se tenha o hábito de escrever todos os dias.

6.
O outro sentido de “voz autoral” é mais complexo, pois implica circunstâncias abonatórias nem sempre claras. Trata-se da atitude do autor perante a vida, que tingirá as palavras, as frases, os parágrafos — ainda que use o artifício de uma focalização exterior. Trata-se de voz inelutável e sempre transitiva à percepção do leitor, mesmo que vá jazer nos porões da inconsciência. Tentando trazer o assunto para uma instância mais nítida: o autor, ser humano, jamais conseguirá esconder sua presença na narrativa, por mais que use uma linguagem neutra, sem adjetivações (as adjetivações são um bom meio para descobrirmos a voz autoral, além das ações da personagens, suas falas, etc.): a escolha do tema já é uma manifestação da voz autoral. Claro, estamos a falar em textos mais exigentes. Nos outros, isso é trazido à vista.

7.
Há bons exemplos dessa voz que se visibiliza, como em Mefisto, de Klaus Mann, uma obra polêmica saída em 1936, em plena ascensão nazista. É inequívoco o ódio do autor ao regime que iria desgraçar o mundo: numa festa chique, chega Goebbels, Ministro da Propaganda, que parecia soprar um ar glacial por onde passava. Era como se uma divindade má, perigosa, solitária, cruel, tivesse descido até àquela agitação ordinária de mortais lascivos, covardes e deploráveis. Não fosse grande obra de arte, seria um panfleto. O mesmo se passa com a poderosa voz de Euclides, em Os sertões, capaz de emitir juízos sobre suas personagens, como este acerca de Antônio Conselheiro: Todas as crenças ingênuas, do fetichismo bárbaro às aberrações católicas, todas as tendências impulsivas das raças inferiores, livremente exercitadas na indisciplina da vida sertaneja, se condensaram no seu misticismo feroz e extravagante.

8.
Os casos a que no parágrafo 6 se chamou de “exigentes”, são aqueles em que a voz autoral se reserva o direito de invisibilizar-se de modo aparente, mas conduzindo o leitor pela mão sem que o mesmo leitor se dê conta disso. Sua invisibilização, entretanto, é a mesma do velho Polônio atrás da cortina, a um passo do punhal de Hamlet. É preciso ser mais sutil, deixar tudo para as entrelinhas, mas aqui é preciso ser radical: mesmo sutil, ela aparece.

9.
Anátema a quem pense que se está a propor a demolição do velho monumento erguido ao narrador, em cuja construção desunharam-se gerações de teóricos e acadêmicos, mas apenas trazer à discussão a figura do autor que, ao fim e ao cabo, é o responsável por tudo que é apresentado na narrativa, seja qual for o disfarce que use, e é difícil aceitar que o disfarce seja mais importante de quem o leva.

10.
Para iniciantes, o melhor conselho é: deixe fluir a sua voz, seja no sentido estilístico, seja no sentido de ente portador de concepções de vida. Às vezes, a “traição” de sua voz será algo simples, um adjetivo deixado ao acaso, como as pontas das botas de Polônio emergindo da cortina — mas que isso não o impeça de escrever do modo como desejar, sem importar-se com o juízo alheio, com os cancelamentos tão em moda, etc., isso é matéria estranha à literatura e não deve perturbar ninguém, exceto se sua sensibilidade possa levá-lo a desistir da escrita.

Luiz Antonio de Assis Brasil

É romancista. Professor há 35 anos da Oficina de Criação Literária da PUC-RS. Autor de Escrever ficção (Companhia das Letras, 2019), entre outros.

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