Em 31 de agosto de 2016, depois de um agônico e kafkiano processo político travestido de legalidade, consumado o golpe, Dilma Rousseff leu seu discurso de despedida, reservando as últimas palavras para citar conhecidos versos do poeta russo Vladimir Maiakovski: “O mar da história/ é agitado./ As ameaças/ e as guerras/ havemos de atravessá-las,/ rompê-las ao meio,/ cortando-as/ como uma quilha corta/ as ondas”. Desde que a encenação do impeachment teve início, um sem-número de intelectuais, militantes, cidadãos, artistas se manifestaram contra aquilo que já se antevia catastrófico, e que a continuidade do golpe (com Jair Bolsonaro, Paulo Guedes e caterva) veio a confirmar: um governo antipopular, privatista, truculento, conservador, misógino, retrógrado, violento.
A resistência ao golpe se fez em várias frentes, entre as quais a resistência em forma de poemas. Por meio sobretudo da internet (mas também em livros, jornais, eventos, performances e outros meios), muitos e muitos poetas, centenas mesmo, se dispuseram a compor obras falando do golpe, contra o golpe. (Não encontrei nenhum poema sequer a favor do golpe, embora tenha havido, ainda que em escala ínfima, artistas e poetas simpatizantes ao golpe — mas, ao que parece, não quiseram expor publicamente em poemas tal adesão.)
No Facebook, havia a página Poemas contra o Golpe (ora desativada), com 29 poemas, entre os quais este, curtíssimo, certeiro:
sem dúvida
foi golpe
porque machucou
(Pietro Santurbano)
O terceto de Santurbano vai direto ao ponto quando afirma que, sim, “foi golpe”, e não impeachment o que ocorreu. Mais do que mera terminologia de valor supostamente equivalente, dizer uma ou outra palavra corresponde a posições político-ideológicas bem distintas. A sagacidade do poeta foi utilizar o termo “golpe” também no sentido de “pancada, batida, contusão”, ou seja, algo corporal mesmo. Daí, o poema dá concretude ao golpe político, mostrando o quanto ele causou sofrimento objetivo, no corpo e no sentimento das pessoas: “machucou”, feriu, traumatizou.
Na internet, ainda está disponível a página 7 poemas em vídeo contra o Golpe. Em cinco deles, há performances muito instigantes de Vinicius Borba, Lucas Afonso, Bárbara Esmenia, Jairo Pereira e Nêggo Tom. No sétimo vídeo, hilário, artistas leem de modo literal, mas interpretando com evidente conotação satírica, paródica, pernóstica, alguns poemas do poetastro Michel Temer. João Adolfo Hansen fez uma análise de Anônima intimidade, poemas de Michel Temer. O professor mostra em sua resenha a inoperância e fragilidade dos versos do presidente (golpista). Às tantas, diz: “Não só traidores da pátria, não só traidores de amigos, não só traidores de companheiros de viagem estão no Inferno. Também traidores da linguagem. Os criminosos da linguagem. Pois, leitor, aqui a obra é o homem, fundidos ambos naquele gelo eterno da falta do bem da forma”. Como poeta, nem para “decorativo” serve o ex-vice.
Em 2017, com prefácio de Márcia Tiburi e orelha da própria presidenta Dilma, vem a lume o livro Golpe Antologia-Manifesto, com a presença de 120 artistas — cito alguns, para ilustrar a força do grupo: Ana Elisa Ribeiro, André Vallias, Annita Costa Malufe, Bruna Beber, Claudio Daniel, Dirceu Villa, Eduardo Lacerda, Elvira Vigna, Frederico Barbosa, Gregório Duvivier, Heitor Ferraz, João Paulo Cuenca, Julián Fuks, Laerte, Luiz Ruffato, Luiza Romão, Manoel Herzog, Marcelino Freire, Márcia Denser, Marcia Tiburi, Marcos Siscar, Micheliny Verunschk, Nicolas Behr, Noemi Jaffe, Pádua Fernandes, Paulo Ferraz, Pedro Tierra, Reynaldo Damazio, Ricardo Lisias, Tarso de Melo, Tatiana Salem Levy, Veronica Stigger. O livro todo é um legítimo documento de resistência. Alfredo Bosi pondera que resistência é “Momento negativo de um processo dialético no qual o sujeito, em vez de reproduzir mecanicamente o esquema das interações onde se insere, dá um salto para uma posição de distância e, deste ângulo, se vê a si mesmo e reconhece e põe em crise os laços apertados que o prendem à teia das instituições”. Noutras palavras, resistir é refletir sobre tudo o que nos constitui como sujeitos e agir contra as teias que querem nos paralisar — teoria e práxis.
Da antologia comento dois poemas apenas. Em Patópolis é aqui, Micheliny Verunschk recupera zombeteiramente a figura do pato da Fiesp e dos manifestoches que aderiram, como bonecos, aos chamamentos golpistas de empresários articulados em torno da poderosa Federação das Indústrias paulista:
Patópolis é aqui
nosso deus está lá
na porta do templo
amarelo e inchado
de nosso orgulho
Patópolis é aqui
mergulho em apneia
entre as moedas
que escondemos
avaramente
Patópolis é aqui
nossas BMW
nossas vacinas
contra o mundo
as bundas brancas
rebolantes
de Pato Donald
o Trump
nosso ídolo, nosso totem
quá quá quá
Patópolis é aqui
as crianças mortas
sobre a mesa
nosso ódio
o antigo ódio
colonial
venham Huguinho, Zezinho, Luizinho
vamos render graças ao velho tio
quá quá quá
Verunschk interpreta o pato da Fiesp como uma espécie de versão dos patinhos da HQ (Tio Patinhas, Donald, Huguinho, Zezinho, Luizinho). Mas agora Patópolis é aqui, com os patinhos brasileiros acreditando nos empresários que os exploram. Mais uma vez, é apontada a presença dos EUA como partícipe do golpe (tal qual 1964), com a aproximação onomástica entre “Pato Donald” e “Donald Trump”, presidente conservador e retrógrado, à maneira do golpista Temer. O “velho tio” se refere literalmente ao milionário personagem Tio Patinhas, mas, claro, o sentido se estende ao império de Tio Sam, símbolo agressivo de poder, desde o dedo em riste da famosa figura. Pairando sobre o poema, subentendemos a expressão “cair como um patinho”, que o dicionário traduz com precisão como “deixar-se lograr muito ingenuamente” (Houaiss). Quando trabalhadores aderem, ingenuamente, à perspectiva do patrão, é que se confirma o alcance da força persuasiva dos meios de comunicação e da indústria cultural, que agem no sentido de esvaziar a potência crítica do cidadão, tornando-os dóceis, domesticados, conformados, convencidos da interpretação da realidade que tais mídias massivamente proliferam.
Embora com humor, Tarso de Melo apresenta um quadro bastante melancólico do país, no poema Um país a temer:
Presidência Salvo-Conduto
Vice-Presidência Roleta-Russa
Ministério do Planejamento de Fuga
Ministério da Defesa Criminal
Ministério da Intransparência
Ministério da Desfazenda e Antiprevidência
Ministério da Deseducação
Ministério da Saúde para Quem Pagar
Ministério da Agricultura Gourmet
Miniministério da Cultura
Ministério do Trabalho Precário
Ministério das Submissões Exteriores
O novo presidente (golpista) explicita no próprio nome, como evidência da tragédia que alegoriza, um sentimento que se espalhou país afora (lembre-se que sua popularidade alcançou 3%): “temer”, cuja primeira acepção registra “sentir medo ou temor de; recear”. A composição de seu ministério (contrastando intensamente com a diversidade do ministério de Dilma Rousseff) mostra bem a cara de seu governo (golpista): homens brancos, velhos, ricos, caretas, empresários, políticos da velha guarda, que bem exemplificam o tipo de grupo que passa a administrar o país. Os trocadilhos revelam a face “verdadeira” dos órgãos, como os ministérios da Intransparência, da Deseducação, da Saúde para Quem Pagar e o das Submissões Exteriores — este, mostrando a relação de subserviência que o governo não-legítimo passa a exercer, a partir de orientações estadunidenses, abandonando o movimento que se vinha fazendo, com Lula e Dilma, em direção ao fortalecimento de um bloco latino-americano.
Em conhecida passagem do ensaio Palestra sobre lírica e sociedade, Theodor Adorno diz: “A referência ao social não deve levar para fora da obra de arte, mas sim levar mais fundo para dentro dela. O teor de um poema não é a mera expressão de emoções e experiências individuais. Pelo contrário, estas só se tornam artísticas quando, justamente em virtude da especificação que adquirem ao ganhar forma estética, conquistam a sua participação no universal”. O filósofo alemão aponta que é na forma mesma da arte, do poema, que a história há de se incrustar, como um pó gruda nas coisas, e não meramente na referência cosmética a algum fato acontecido. A análise formal do poema poderá dar visibilidade a esse pó das coisas.
Se certo senso comum (des)entende que poetas são seres etéreos, lunáticos, alienados, românticos, omissos, desprovidos de atitudes práticas e sem posicionamento político crítico, todo esse movimento de resistência ao golpe jurídico-midiático-parlamentar veio provar exatamente o contrário. Se há poetas daquela estirpe, há estes todos aqui (e muitos outros mais) que pensam, se revoltam, enfrentam, esbravejam, fazem arte reflexiva, vão à luta. Seja em performances, em comícios, na rádio, no livro, na internet, os poetas dão o que têm para combater injustiças, desigualdades, traições, golpes: a palavra, o poema, a arte.
Tal espírito combativo se encontra também lá nos versos de Maiakovski, com os quais Dilma Rousseff encerrou seu discurso, consumado o golpe. Assim, com o mar agitado à frente, vamos atravessando, com a reflexão de Riobaldo: “O que eu vi, sempre, é que toda ação principia mesmo é por uma palavra pensada. Palavra pegante, dada ou guardada, que vai rompendo rumo”. Com a coragem de Diadorim, a poesia resiste, sim, e a seu modo vai rompendo rumo, vai rompendo as ondas.
NOTA
Há uma versão mais longa desse texto, com o título O golpe de 2016 na voz e nos versos dos poetas, publicada no livro Foi golpe! O Brasil de 2016 em análise, com organização de Ana Carolina Galvão, Junia Zaidan e Wilberth Salgueiro.