Neste mesmo mundo, de Adriana Lisboa

A estrofe única não deixa pausa para fôlego ou suspiro
A poeta e romancista Adriana Lisboa
02/05/2017

A vida íntima
de uma menina de dez anos
na Somália (Somália é qualquer lugar
neste mundo, neste mesmo mundo):
o clitóris e os lábios vaginais são decepados
a menina é costurada em seguida, deixando-se
apenas uma pequena abertura para a urina e a menstruação
a menina é imobilizada até que a pele grude
entre suas pernas
e no dia em que estiver pronta para o sexo
seu marido
ou uma mulher respeitada na comunidade
vai abri-la de novo, cortá-la
como se corta uma fruta, como se corta
a aba de um envelope que traz um documento importante
como o avião corta a nuvem
como a nuvem corta o céu.

Adriana Lisboa é, hoje, uma das mais importantes romancistas brasileiras, ademais publicou contos, textos infantojuvenis e, até o momento, um livro de poemas — Parte da paisagem (2015). O poema em vista saiu, antes, no jornal O Globo, em 2011. Do jornal ao livro, afora o tamanho diferente de um verso ou outro, importa destacar a radical mudança no título, que passou de Imperialismo cultural para Neste mesmo mundo, abandonando um possível tom panfletário em favor de uma expressão que, repetida no quarto verso, aponta para uma condição inclusiva, como se a Somália fosse uma espécie de metonímia do mundo ao qual pertencemos (e, portanto, devêssemos fazer algo para transformá-lo, se entendemos que ali — na Somália e no mundo — há algo que fere a dignidade do ser humano: e aqui se trata da dignidade, da autonomia, da liberdade, do corpo da mulher).

A estrofe única não deixa pausa para fôlego ou suspiro, e os dezessete versos, variando de três a dezenove sílabas, exigem plena atenção à história que se conta. E o que se conta é o caso de mutilação genital feminina de “uma menina de dez anos”, a seguir referida como “a menina”. Mais de 130 milhões de “meninas” — na Somália, em outros países africanos e ainda em muitos outros países — foram vítimas da brutal e bárbara intervenção. O argumento antropológico-cultural que tenta legitimar a mutilação, e que se baseia, em síntese, na tradição (evidentemente conservadora e perpetuadora de um status quo masculino), não resiste nem a um mínimo sequer de razoabilidade: a virgindade seria condição para o casamento, daí a “necessidade” de cortar a mulher, para que seja preservada a sua “pureza” para o futuro marido.

O poema, nos versos de 1 a 4, apresenta o objeto de sua reflexão, a “vida íntima/ de uma menina de dez anos”, e o lugar em que tal vida ocorre: se a menina é especificamente da Somália, no entanto Somália — termo agora destacado em itálico — “é qualquer lugar/ neste mundo, neste mesmo mundo”, ou seja, qualquer lugar em que se cometa tamanha violência será Somália, e será sempre este mesmo mundo no qual vivemos. Nos versos de 5 a 13, descreve o ato da mutilação e a sua finalidade obscura e obscurantista: em linguagem direta, afirma que “o clitóris e os lábios vaginais são decepados/ a menina é costurada em seguida, deixando-se/ apenas uma pequena abertura para a urina e a menstruação” e que a menina assim ficará até que algum marido a despose. Nos versos finais, de 14 a 17, o poema se encerra com metáforas líricas: a menina vai ser cortada “como se corta uma fruta, como se corta/ a aba de um envelope que traz um documento importante/ como o avião corta a nuvem/ como a nuvem corta o céu”. Se, num primeiro momento, essas metáforas parecem atenuar o drama e o sofrimento da menina e dos milhões de meninas que passaram por tal ignomínia, uma releitura indica que as comparações guardam — para além da beleza incômoda das imagens — não só um contundente poder crítico mas um compromisso de solidariedade com a dor da mutilação imposta.

A força e a lógica dessas imagens foram com precisão percebida por Simone Brantes e Alberto Pucheu, em artigo apresentado no encontro da Abralic (Associação Brasileira de Literatura Comparada) de 2015 na UFPA: “Todos os cortes anteriores incidem sobre objetos que de algum modo retomam as partes íntimas da menina de dez anos (o clitóris e os lábios vaginais): a fruta (em relação clara com o corpo e o sexo) e o envelope cuja aba (aqui a relação com a forma dos lábios colados) vai ser sacrificada para que se possa ter acesso ao que seu interior até então guardava”. A interpretação dos autores caminha na direção de um gradual distanciamento das imagens em relação ao corte da mutilação. De outro modo, poderíamos ainda vislumbrar na ideia de um avião (masculino) que corta a nuvem (feminino) a insinuação algo fálica de uma força que se impõe sobre outra; nesse sentido, lendo o final do poema em perspectiva otimista ou mesmo utópica, a nuvem (o feminino), antes cortada pelo avião, agora é que “corta o céu” (masculino), num arremate que — alegoricamente — poderia sugerir a transformação (o corte?) dessa condição subalterna da mulher. Noutra chave, mais “realista”, ecoa ainda nesse verso final — “como a nuvem corta o céu” — a possibilidade de, sendo a nuvem metáfora do corpo da menina, uma denúncia de que o sombrio e dolorido (do corte que mutila) tomam o lugar do que deveria simbolizar o esclarecido ou mesmo algo sublime (o “céu”).

A resistência e a recusa a essa subalternidade devem se fortalecer, e o poema é uma voz a mais nesse coletivo de denúncia. Assim também podemos ver a trajetória de Ayaan Hirsi Ali, somali que relata em seu livro Infiel (2006) a mutilação de que foi vítima aos cinco anos, e toda a perseguição que sofreu e sofre desde que se insurgiu contra tal prática e passou a manifestar ao seu país e a este nosso mundo toda a sua revolta. O corte do clitóris e dos lábios vaginais impede ou restringe à mulher o direito de usufruir plenamente de seu corpo, de ter prazer, de atingir o gozo, o orgasmo, de ser dona de si. O trauma (ferida, cicatriz) decorrente de dolorida e ultrajante invasão física, moral e existencial se fixa no poema, não só em seu “conteúdo” mas na repetição incessante do signo que representa a circuncisão: “cortá-la/ (…) corta uma fruta, como se corta/ a aba (…)/ (…) corta a nuvem/ (…) corta o céu”. O poema de Lisboa, o relato de Ali e outras manifestações querem tornar pública a prática de tamanho horror e barbaridade, prática infame que impõe à mulher lugar e função de coisa (coisa que se pode cortar conforme a vontade — a “tradição” — de outro).

Em contexto bem diverso, vale recordar o poema Pré-nupcial, de Glória Perez, publicado na antologia Carne viva, em 1984: “Aprendi com mamãe/ Que nunca teve queixa/ Mulher perdida goza/ Mulher direita deixa”. Essa tradição conservadora e conformista que dociliza, domestica e coisifica o corpo feminino vem sendo minada, ora a gotas insistentes, ora a golpes de martelo. A frase mais famosa de Theodor Adorno, ao fim de Crítica cultural e sociedade, diz que “escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro, e isso corrói até mesmo o conhecimento de por que hoje se tornou impossível escrever poemas”. O filósofo alemão jamais proibiu — nem teria poder para tanto — ninguém de fazer poemas. O alcance maior de sua frase é no sentido de chamar artistas e intelectuais à responsabilidade de dar a suas obras uma consciência crítica que impeça para sempre que eventos como Auschwitz se repitam. A mutilação genital feminina — que já atingiu e feriu milhões de mulheres (provocando inclusive milhares de mortes por problemas de infecção, além de sentimento de inferioridade, baixa autoestima, sintomas depressivos, suicídios) — é a continuação de uma catástrofe permanente, a exemplo de Auschwitz. O poema, nos mobilizando em relação a esse gravíssimo conflito civilizatório, contribui para que o esclarecimento se expanda — contra o medo e a opressão.

A “menina de dez anos” do poema é uma criança, é mulher e é possivelmente negra. Não é uma fruta, não é avião, nuvem ou céu. Nem é uma aba de um envelope. Mas deve ser, para nós, o que há de mais importante, mais importante que qualquer documento. Em silêncio ou indiferentes, nos tornamos, ainda que sem querer, cúmplices das hediondas mutilações perpetradas contra esta menina do poema, contra todas as meninas deste mundo, deste mesmo mundo nosso.

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

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