Caveira, de Cruz e Sousa

Em "Caveira", Cruz e Sousa deixa um pouco de lado sua militância pela causa negra
Cruz e Sousa, poeta brasileiro
30/08/2019

I
Olhos que foram olhos, dois buracos
Agora, fundos, no ondular da poeira…
Nem negros, nem azuis e nem opacos.
          Caveira!

II
Nariz de linhas, correções audazes,
De expressão aquilina e feiticeira,
Onde os olfatos virginais, falazes?!
          Caveira! Caveira!!

III
Boca de dentes límpidos e finos,
De curva leve, original, ligeira,
Que é feito dos teus risos cristalinos?!
        Caveira! Caveira!! Caveira!!!

A caveira, ao que parece, exerce certo fascínio entre os homens. Na literatura, na música, no teatro, na pintura, no cinema, nos quadrinhos, nas artes em geral, as caveiras se multiplicam. Tal fascínio se reafirma em nosso simbolista-mor, o catarinense João da Cruz e Sousa (1861-1898). Embora a maioria dos tradutores brasileiros do Hamlet shakespeariano prefira traduzir skull por “crânio”, o fato é que sobrevive no imaginário a cena do trágico personagem empunhando uma… caveira, em suas especulações metafísicas. Entre as caveiras de Van Gogh, é célebre (e bizarra) uma fumando, apropriada inclusive para campanhas antitabagistas. Na poesia brasileira, a imagem da caveira surge aqui e ali, mas iconoclástica  e hilária é sua aparição no setissilábico Epitáfio, de Oswald de Andrade: “Eu sou redondo, redondo/ Redondo, redondo eu sei/ Eu sou uma redond’ilha/ Das mulheres que beijei/// Por falecer do oh! amor/ Das mulheres da minh’ilha/ Minha caveira rirá ah! ah! ah!/ Pensando na redondilha”. Algo desse humor deslavado, nada mórbido, Oswald foi buscar no poema do autor de Faróis. Recente, Arnaldo Antunes lança mão tanto da imagem de Cruz (buraco) quanto do riso de Oswald — “o buraco ensina a caber/ a semente ensina a não caber em si/ a terra sabe receber/ a caveira ri” — na sua costumeira voz grave. Em síntese, na arte e na vida a caveira, símbolo do corpo que esboroa, se perpetua.

Está em Faróis (publicado postumamente em 1900), aliás, este singular poema. Singular porque é, de imediato, um poema que se vê, o que Leminski viu com nitidez em sua biografia Cruz e Sousa o negro branco: “O mais alto ponto de visualiconicidade (consciência de formas de Cruz e Sousa): olho-nariz-boca, a caveira falando, no código tanático de Cruz, os pontos de exclamação repetidos, simetricamente, marcando o número da estrofe, I, !, II, !, !!, III, !, !!, !!!. O signo como morte da Vida: a palavra-esqueleto”. (Apontamentos semelhantes fez Alice Barros em sua dissertação defendida na UFMG em 2018, A nevrose do poeta: da poesia como hýbris na literatura de Cruz e Sousa.) Essa consciência de forma no poema encena, micrologicamente, o prazer simbolista pela Forma (que se escancara, por exemplo, em O soneto, de Últimos sonetos, cuja primeira estrofe explora, por coincidência, o campo do poema em pauta: “Nas formas voluptuosas o Soneto/ Tem fascinante, cálida fragrância/ E as leves, langues curvas de elegância/ De extravagante e mórbido esqueleto”. Singular também é o poema pelo tom bem-humorado que destoa dos traços da obra do poeta, entre o melancólico e o sagrado, o cerimonioso e o transcendental. Não que tais traços não estejam em Caveira, mas surpreende o modo “verbivocovisual” com que o poeta os harmoniza nos doze versos do poema.

Os doze versos, no conjunto, confirmam, de maneira mais sutil, a estrutura composicional das três quadras: à exceção óbvia do estribilho crescente, exclamativo, coral (Caveira! /// Caveira! Caveira!! /// Caveira! Caveira!! Caveira!!!), os demais versos são todos decassílabos, alternando-se entre heroicos e sáficos: h/s/h, s/h/s, h/s/h; as rimas consoantes e também alternadas seguem o padrão ABAB, com as vogais a/e/a/e, a/e/a/e, i/e/i/e. A regularidade métrica, a alternância da cesura e das rimas, mais a melodia das rimas consoantes preparam a chegada do quarto verso, curto mas incisivo: ao romper a estrutura, o quarto verso como que recebe uma coroação, é o corolário de cada estrofe. Se nos 49 poemas de Faróis o pronome pessoal “eu” aparece literalmente 45 vezes, é digno de nota apontar sua explícita ausência em Caveira. Porque, singularmente, Cruz e Sousa aqui vai posicionar seu “eu lírico” como que a certa distância do drama da finitude, em especial da finitude da beleza, mirando sua zombaria mais especificamente ainda contra a vaidade humana.

A vaidade — que se alimenta da beleza “feiticeira” dos olhos, do nariz e da boca — se vê derrotada diante da dura realidade que corrói matéria e corpo (corrosão e putrefação que encontram expressão exemplar na poesia ímpar do contemporâneo Augusto dos Anjos). O substantivo caveira, respondendo à descrição que se lhe antecede, e acompanhado do ponto de exclamação como que mimetizando um ou dois ou três dedos em riste (ver Adorno em Sinais de pontuação, Notas de literatura I), abala a sintaxe construída dos “tercetos”, as “langues curvas de elegância” que desenham um rosto de correções audazes, olfatos virginais, risos cristalinos. Noutras palavras, o substantivo (aquilo que, essencial, ficará: a caveira) se impõe aos adjetivos (aquilo que, secundário, findará). Se na primeira estrofe há quatro adjetivos (fundos, negros, azuis, opacos), uma única substantiva Caveira e uma exclamação bastam; na segunda, há cinco adjetivos (audazes, aquilina, feiticeira, virginais, falazes) e a Caveira e as exclamações se ampliam, ganham corpo e novos dedos em riste; na terceira estrofe, há seis adjetivos (límpidos, finos, leve, original, ligeira, cristalinos) e para se contrapor a esses excessivos ornamentos do corpo ainda vivo a Caveira se impõe, forte, dominadora, por três vezes e com iguais seis sinais de exclamação: ! !! !!! (indiciados já na numeração romana da estrofe: I II III). O espaçamento diferenciado do quarto verso reforça a singularidade da frase nominal, que se assemelha a um grito coletivo.

Mas como poderia o corpo vaidoso e narcísico gritar contra si próprio?  O poema parece dizer que esse grito, à maneira de um coral, vem daquele supostamente “ausente” eu lírico. Retoricamente, o poeta descreve nos três versos iniciais de cada estrofe um rosto belo, sedutor, perfeito, que, com o tempo, no entanto, estará fadado ao merencório fim, “no ondular da poeira”. Para anunciar este fim, o poeta se finge porta-voz de um brado, que pode — simulemos, falazes — ser afim a sua própria visão de mundo (tendo em vista todo o tormento de ser negro em contexto de poder branco), ser a representação filosófica da vanidade da vida (considerando a presença do pensamento de Schopenhauer), ser talvez a força cósmica (tão ao gosto do ideário estético simbolista) que governaria o universo. A caveira sintetiza o “conteúdo de verdade” — diria Adorno — que o poema, finissecular, incorpora formalmente como uma certeza da existência que há de transformar “olhos” em “buracos”.

Em Caveira, Cruz e Sousa deixa um pouco de lado sua militância pela causa negra, possivelmente dado o fato de que a finitude humana — e a beleza humana, e a vaidade humana — atravessam e desbotam qualquer cor. Se “alma não tem cor” (André Abujamra), a morte também não tem. Isto é: a história nos mostra que a violência que mata atinge com muito mais intensidade os negros. No entanto, neste poema de Cruz e Sousa, tal “emparedamento” social — de que o próprio poeta foi vítima — não é questão nuclear. Todos morrem o tempo todo no mundo. Noutros termos, estamos todos em um devir-caveira. Por isso, parece, para permanecermos no tom tragicômico do poema, a caveira não perece! Não perece!! Não perece!!!

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

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