O enigma da palavra

A enigmática pergunta, cujas respostas se multiplicam, se encontram, se afastam, mas quase nunca são definitivas
Clarice Lispector, autora de “Água viva”
01/12/2009

Para escrever eu antes me despojo das palavras.
Clarice Lispector

Ontem, um amigo escritor me enviou um e-mail enigmático. “Por que você escreve?”, me perguntou de supetão, sem preâmbulos nem despedidas. Disse enigmático e explico: o enigma da mensagem não estava exatamente na pergunta, comum nesse mundo desde que alguém pegou pela primeira vez papel e lápis, ou celulose e nanquim, ou terra e pedra, ou carvão e caverna. O enigma se escondia atrás da interrogação, remoía a sua semântica, sacudia o seu significado. O enigma iniciava depois da pergunta, começava onde ela terminava. Após a sua existência. Depois que uma pergunta é feita (qualquer uma), esperamos ansiosos pela resposta (qualquer uma). Às vezes, a resposta justifica a pergunta, às vezes nos leva para outra questão. E o meu amigo me fazia pensar — não na pergunta em si — mas na necessidade dela. E pior, era aquele tipo de e-mail que exigia resposta, não admitia passar despercebido. Mas o que ele esperava que eu respondesse, afinal? Por que eu gostava, precisava? Por que me salvava, por que me doía? Por que era bonito, por que era triste? Eram respostas possíveis, mas nenhuma totalmente verdadeira para mim.

“O mundo é maior do que eu posso”, disse uma vez um autor de livros maravilhosos, nunca publicados. E talvez essa fosse uma boa resposta para o meu amigo, que exigia uma definição. Não apenas a bela frase do autor desconhecido, mas o fato de ele escrever, independentemente de publicações. “Não me chame de escritor”, ele me disse uma vez, quebrando minhas expectativas. Naquele dia, nos despedimos docemente. Ele, sabendo que o esperavam em seu escritório papel e caneta, eu, que assim que chegasse em casa, ele inevitavelmente começaria a escrever. Para ele, não havia pressa, apenas uma palavra após a outra. Apenas um tempo que só ele conhecia e reconhecia em sua relação com a escrita.

Em 1919, muitos anos antes de o meu amigo me enviar o seu e-mail enigmático, o mago surrealista André Breton levantou a enquete, “Pourquoi éscrivez-vouz?” na revista literária Littérature. As respostas foram as mais variadas. Paul Valéry disse que escrevia por fraqueza; Louis Aragon, por exercício lúdico; Tristan Tzara, como refúgio de “todo ponto-de-vista”. Lembrando de Breton, antes de responder ao meu amigo, procurei a resposta de escritores de ontem e de hoje. “Escrevo para mim”, disse a nossa Clarice Lispector, “para que eu sinta a minha alma falando e cantando, às vezes chorando”. “Escrevo para não envelhecer”, afirmou Hilda Hilst. “Escrevo porque tenho prazer em elaborar com palavras esse traçado de tantas vidas”, declarou Lya Luft. “Escrevo para me expressar”, falou Ferreira Gullar. “Quando escrevo não sinto a falta do outro, nem de mim”, sentenciou Caio Fernando Abreu. E foi ele também que disse: “Quando tudo parece sem saída, sempre se pode cantar. Por isso, escrevo”.

Motivada por tantas respostas belas e inspiradoras, voltei ao computador e comecei a digitar a minha. “Eu escrevo porque…”. Por quê? Não conseguia continuar. Eu poderia responder muitas coisas, mas permanecia em mim o enigma. Uma sensação de que qualquer resposta, mesmo a mais sincera (e a questão aqui não era de franqueza, mas de mistérios), e inclusive a dos grandes escritores, na verdade cobria outra. E essa outra é que seria a raiz de tudo, o germe e a gema da escrita. “Eu escrevo movido por um impulso cuja natureza desconheço e não quero conhecer”, disse Moacyr Scliar. E talvez estivesse nessa frase do escritor gaúcho o reconhecimento de um lugar intangível, inalcançável. Não por ser inatingível, mas por pertencer a outra ordem, que não essa das definições e palavras. “Escrever existe por si mesmo?”, questionou a narradora de Clarice Lispector em Sopro de vida. Ela mesma respondendo: “Não. É apenas o reflexo de uma coisa que pergunta”.

Lembrei então do conselho de Rainer Maria Rilke em Cartas a um jovem poeta: “Não busque por respostas que não lhe podem ser dadas, porque não as poderia viver. Viva por enquanto as perguntas”. E não seria isso que faz todo escritor, ao debater-se consigo mesmo, diante da folha em branco? Arrasta-se de uma pergunta a outra, sem nunca respondê-las definitivamente? E não seria, cada tentativa de resposta, o nascimento e a experiência de uma nova pergunta?

Não consegui responder ao meu amigo, nem a mim mesma. Não porque não pudesse falar de meu amor à literatura, da alegria que ela me dá, na mesma medida que me angustia, da beleza e da violência das palavras que seduzem e perturbam, e ainda da importância que reconheço na escrita e na leitura na formação de uma pessoa, subjetiva e socialmente, e tantos outros motivos e justificativas, que permaneceriam exatamente desse modo, como motivos e justificativas, mas nunca seriam a raiz de tudo. Nunca tocariam com seus dedos o enigma. E também: nunca seriam tocados por ele. Nesse momento, compreendi que ao pensar na pergunta de meu amigo, não a respondia, mas a vivia um pouco, como queria o poeta Rilke. Compreendia que o enigma não existe apenas do escritor para a escrita, mas também desta para quem escreve. “Se nos desvendamos completamente à palavra, ela nos embota”, disse uma vez Hilda Hilst. “Há que se ter sempre essa fricção entre o que se disse e o que não se pôde dizer”. Talvez, como se a literatura precisasse se aproximar do escritor também, numa espécie de eterno ritual de atração e repulsa, desnudar e esconder. Ao pensar nisso, não pude deixar de lembrar de uma passagem, numa biografia de Clarice Lispector. Após retornar de uma viagem ao Egito, uma amiga lhe perguntou, de brincadeira: “Você decifrou o enigma da pirâmide?”. “Não”, foi a resposta séria da escritora, que concluiu logo depois, “Mas nem ela me decifrou”.

Claudia Lage

Claudia Lage é escritora. Autora do romance Mundos de Eufrásia, entre outros.

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