Nas engrenagens da sociedade moderna

Entrevista com Rodrigo Lacerda
Rodrigo Lacerda por Osvalter
01/09/2009

Rodrigo Lacerda aprecia o risco. Para além de qualquer teoria vazia, literatura é risco. Sempre. Para autor e leitor. Num jogo lúdico de prazer e decepções. Lacerda muda (e muito) de estilo de um livro para outro — mesmo levando em consideração que os dois últimos, Vista do Rio e Outra vida, tenham muitos pontos em comum. No entanto, eles pouco guardam de O mistério do leão rampante, de 1995, livro de estréia do autor, e de A dinâmica das larvas. “Gostaria de saber por que eu mudo tanto. Só sei que gosto da idéia de passar de um universo para o outro”, diz nesta entrevista concedida por e-mail. Lacerda, 40 anos, também fala da sua trajetória literária, do ambiente literário brasileiro (mercado, oficinas, o lugar do escritor na sociedade contemporânea), política, entre outros assuntos.

• Que lugar ocupa Outra vida no conjunto de sua obra? É possível dizer que este romance representa um amadurecimento? O que o aproxima e o afasta do romance O mistério do leão rampante, sua estréia em 1995?
Outra vida é, dos meus livros de ficção, meu sexto livro. Eu tinha 26 anos quando estreei, agora tenho 40. Do ponto de vista da linguagem, estou mesmo habituado a ver uma ordem evolutiva nesses livros. Segundo ela, tudo começou com os meus principais modelos literários da adolescência, que resultaram no meu livro de estréia, O mistério do leão rampante, uma novela histórica de veia humorística que flerta com o português barroco. Na minha segunda novela, A dinâmica das larvas (1996), eu continuaria ligado ao gênero humorístico, dando à sintaxe o mesmo tratamento meio barroco, mas trazendo os personagens, as situações e o vocabulário para os dias de hoje. Em seguida, eu teria passado por uma fase de experimentação, que resultou num livro-laboratório, Tripé (1999), com meus primeiros contos, textos dramáticos e crônicas. Esse resultaria no meu primeiro romance, Vista do Rio (2004). De tom geral mais dramático, ele tem uma linguagem avessa à ondulação barroca: as frases são mais curtas e menos musicais, a pontuação dirige mais de perto a leitura, o narrador é um sujeito extremamente contido. Depois veio O fazedor de velhos (2008), um livro juvenil, no qual a linguagem é muito parecida com a que uso no dia-a-dia: uma sintaxe natural e um vocabulário contemporâneo, com a música da oralidade. Meu romance recém-lançado, Outra vida, nessa “evolução” que eu elaborei, cruzaria os universos barroco e contemporâneo em dois planos. No da linguagem, repetiria a combinação da sintaxe menos direta com o vocabulário contemporâneo. No plano da sensibilidade, incorporaria a oscilação emocional barroca, mas aplicando-a às questões da nossa época. Mas tudo isso, hoje, é mais útil para quem está de fora. Já duvido dessa evolução tão coerente. Nunca sabemos muito bem o que está acontecendo nos subterrâneos do processo, e precisamos reconhecer isso. Escrevemos o que somos no momento, e não temos controle absoluto sobre quem somos. Meus livros me surpreendem, assim como muitas das minhas atitudes no dia-a-dia. Eles não são diferentes um do outro por seguirem uma evolução premeditada, mas porque cada história me impõe um tempo, um ritmo, um tom, etc. E as histórias vêm de um lugar tão profundo dentro de nós que não conseguimos nem saber onde fica.

• A classe média brasileira está no centro de Outra vida. Por que a escolha deste estrato social e suas situações corriqueiras para a construção de um romance que se pretende universal?
Por que a escolha, como eu disse acima, agora sei que não sei bem. Mas sei que gosto de tê-la feito. Tive a sensação de, além do drama individual dos personagens, ter encontrado também um excelente ponto de vista para as engrenagens da sociedade moderna. Os livros de ficção que se propõem a discutir os rumos do Brasil, normalmente, optam ou por enfocar a parte mais miserável da nossa população, ou por criar personagens da classe alta e recriar o nosso drama social a partir de um recurso “machadiano”, indireto. Nos livros em que a classe média está em primeiro plano, é mais comum: o enredo ficar à margem dos temas políticos, dedicado exclusivamente ao protagonista; o protagonista ser da classe média mas recusar seus valores e julgar-se superior intelectualmente; tudo se passa nos anos da ditadura, quando a classe média era idealista e defensora dos fracos e dos oprimidos. Para falar da classe média, portanto, tive de lidar com dois tipos de preconceito: o que a tem como força social conservadora, defensora da manutenção de seu status quo e da reforma apenas gradual do cenário político e econômico; o da classe média como uma faixa da sociedade que, além de um equilíbrio financeiro delicado, não possui a sofisticação cultural e intelectual da classe alta. É engraçado; todos dizemos querer um país socialmente justo, mas ninguém valoriza aquela classe que seria, pelo menos em tese, o parâmetro possível de distribuição de renda. Queremos tirar as pessoas da pobreza, mas não temos para onde levá-las, pois desprezamos os valores da classe média.

• Quais foram as maiores dificuldades (e alegrias) na elaboração dos personagens, principalmente dos traços psicológicos de cada um? A mãe é muito instável; a filha, contida ao extremo; o marido esconde-se do mundo e carrega nas costas um aterrador sentimento de culpa.
De fato, o desenvolvimento do drama interior dos personagens foi o mais trabalhoso no livro. Dos quatro protagonistas, o único que já nasceu quase pronto foi o personagem do marido. Os demais me fizeram passar por um processo parecido com o daqueles escritores que se dizem pegos de surpresa por uma revolta dos personagens. Parecido mas não idêntico, pois os meus personagens não se rebelaram. Foram até muito pacientes comigo, me convencendo aos poucos de que algumas das minhas idéias para o livro não combinavam com eles. Fui aprendendo a conhecê-los assim; tentando, jogando fora, escutando… A segunda dificuldade foi que, embora eu estivesse interessado em fazer perfis psicológicos tão densos quanto possível, eu não queria perder a tensão narrativa. Queria que as digressões psicológicas não fossem apenas expositivas, mas também contribuíssem para o bom desenvolvimento da trama. Então o jeito que encontrei foi usar os elementos psicológicos como pistas de um enredo de suspense, um suspense emocional. Quanto mais sabemos do passado dos personagens, quanto mais ouvimos sobre os seus sentimentos, mais potencial dramático enxergamos na cena que está se desenrolando.

• O filósofo francês Luc Ferry defende que a família é a sustentação da humanidade e que, em última instância, chega a substituir Deus. Outra vida mostra o esfacelamento de uma família, motivado pela frustração, equívocos, escolhas erradas, azar, etc. O seu romance é mais um exemplo de que “Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada qual à sua maneira”?
Seria, não fosse o fato de que eu discordo dessa famosa máxima do Tolstói. Não acredito que as famílias felizes sejam iguais, ou que a felicidade seja desinteressante ou repetitiva. Acho que o drama humano é inesgotável. Apesar de semelhanças aparentes, uma situação nunca se reproduz exatamente igual, e são essas variações que me encantam. Não existem duas pessoas iguais no mundo, e portanto não podem existir felicidades iguais. “Vivemos como sonhamos, sozinhos”, escreveu, se não me engano, o Joseph Conrad. Acredito completamente nessa individualidade irredutível, que subjaz a qualquer filiação étnica, geográfica, familiar, social, política, religiosa, etc. A arte pode oferecer um alívio momentâneo para esse isolamento, ou então o prazer de ver a variedade da espécie em ação. O amor também. Mas a variedade infinita e o isolamento essencial do ser humano, a meu ver, são inescapáveis, estão na base de tudo. Se é essa nossa condição no mundo, não há nada de banal em escrever sobre os interesses às vezes mesquinhos do cidadão que na superfície é mediano, e até anônimo, como no caso dos personagens de Outra vida. A mesquinharia deles é trágica, se você pensar. Lidar com as dificuldades do homem e das mulheres comuns, agravadas por sua estabilidade financeira relativamente frágil, foi um processo que, para mim, permitiu ao mesmo tempo observações existenciais e políticas, esta última num nível nacional, mas até global. Em resumo, o meu fascínio pela irredutível multiplicidade humana, ao invés de levar minha atenção para longe da realidade que me cerca, no caso desse livro potencializou a profunda admiração que tenho pelas pessoas mais próximas, felizes ou infelizes.

• A corrupção também está no centro de Outra vida. No entanto, a encontramos envolta em arrependimento, sob o olhar de um corrupto comum, do baixo clero, longe dos altos escalões estatais. Por que a escolha desta perspectiva para tratar deste assunto que nos ronda o tempo todo?
O escritor Ivan Ângelo certa vez analisou para mim a literatura da chamada Geração 70: “Nós sabíamos que, artisticamente, não era bom negócio subordinar nossa obra às questões políticas da época, sabíamos que ela ficaria empobrecida se fosse panfletária, mas não conseguimos evitar. Se você for ver, todos os nossos personagens ricos eram capitalistas de charuto e suspensórios, sem nenhum escrúpulo”. Conto essa história porque a opção no tratamento das classes altas, mutatis mutandis, continua sendo a de muitos escritores contemporâneos. Continuamos incapazes de olhar generosamente os atores sociais mais poderosos, identificando-os automaticamente com corruptos. Negamos-lhes humanidade, ou seja, a nossa solidariedade essencial pelo seu drama. Isso, eu acho, tem uma explicação: ao enquadrarmos esses personagens num perfil rígido, mantemo-nos numa zona de segurança, na qual os corruptos são sempre os outros, são os magnatas, e não nós. E eu queria abordar o assunto da corrupção, mas obrigando meu leitor a encarar o dilema de ceder ou não à tentação do enriquecimento ilícito de um ângulo que lhe dissesse respeito. Não apenas como a vítima da decisão do outro, superior e degradado moralmente, mas como a pessoa comum que está no meio da encruzilhada.

• O senhor acompanha a série de escândalos políticos que inunda a imprensa diariamente? A política é um assunto que lhe interessa? Ela é uma boa fonte de inspiração ao ficcionista?
Impossível fugir do tsunami, já que você falou em inundação. Eu já me daria por satisfeito se o Brasil voltasse a viver o seguinte aforismo do La Rochefoucauld: “A hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude”. Mas, infelizmente, passamos dessa fase. No Brasil, o vício hoje não se dá mais ao trabalho de homenagear nada a não ser a si próprio. Ele foi institucionalizado. Acho que se alguém é pego num crime, tem de pagar, não importa se outros cometeram o mesmo crime e não foram pegos. Um erro não justifica o outro. Vazou, dançou. É hipocrisia punir só quem você pega com a boca na botija? Até certo ponto é, pois sabemos que a corrupção vem de longe em nossa história e que muita gente já passou pela botija e saiu limpa. Mas é uma hipocrisia fundamental, pois estipula um padrão mínimo de coerência moral para a nação: o fato, quando revelado, precisa ser punido. Quanto à relação entre política e literatura, acho esse cruzamento fascinante, desde que as discussões ideológicas apareçam nos livros de maneira orgânica à trajetória dos personagens, e não como proselitismo, como algo que o escritor colocou ali para ficar “bem na foto”. Tentei fazer essa costura sutil no Vista do Rio e no Outra vida também. Se há uma resistência dos escritores em falar de política, ou de só falarem a partir de um ponto de vista mais bem aceito, é justamente porque a patrulha ideológica está introjetada. Esse padrão politicamente correto se julga progressista, mas é impositivo, autoritário e, sobretudo, cômodo para seus adeptos. Lembro de um cômico americano que ridicularizava os concertos de rock-protesto, dizendo: “Realmente exige muita coragem, subir num palco e defender coisas contra as quais todo mundo é, como a liberdade, o amor, a paz, etc.”.

• Em Outra vida, a passagem do tempo e a ruína do corpo também têm força. Estes assuntos — o fracasso do corpo, a iminência da morte — o preocupam, estão entre questões que o acompanham no cotidiano da vida?
Acho que três medos sempre foram o meu principal motor: o medo de não aproveitar a vida, o de envelhecer e o de morrer. E as combinações entre eles. Não sei como pode ser diferente com as outras pessoas. Esse ano tive, pela primeira vez, não apenas o medo da decadência física, mas a experiência concreta da perda de vigor e mobilidade, além da convivência prolongada com a dor. E no auge da crise, ao precisar fazer uma ressonância magnética e ficar naquele tubo por quase meia hora, imobilizado e com as paredes a um centímetro do meu nariz, tive um trailer bem fidedigno de como é estar num caixão. No Outra vida, me parece, essa preocupação com o tempo está tanto no marido quanto na mulher. Ele sofre em trabalhar enquanto a vida passa; ela, por se julgar longe de seus objetivos. De maneiras diferentes, os personagens comungam comigo essa urgência de aproveitar a vida o máximo de tempo. Por outro lado, desisti dos meus planos de driblar a morte recorrendo à criogenia. Continuo querendo aproveitar, mas sei que a vida é complicada, te obriga a viver coisas horríveis, e a ver os outros vivendo coisas horríveis. De me suicidar jamais terei coragem, mas aceitar a morte eu espero um dia conseguir. O fazedor de velhos, meu quinto livro, muitas vezes, funciona para mim como um manual para gostar de envelhecer.

• Em recente entrevista à revista Continente (de Recife), o português João Pereira Coutinho (cronista da Folha de S. Paulo) disse: “A literatura contemporânea brasileira é muito pobre. Da nova geração prefiro nem falar”. O senhor, obviamente, deve discordar desta opinião. A literatura brasileira desmente tal afirmação ou Coutinho tem um pouco de razão?
Bem, ele tem todo o direito de acreditar nisso, mas acho que depende do que se busca na literatura. Eu, antes de tudo, busco nela a mesma coisa que busco nas outras formas de arte: uma história bem contada, isto é, aquela que constrói um fluxo envolvente e cujas situações transmitem eficientemente os dramas dos personagens, estabelecendo contato emocional com o leitor. Um romance, um conto, uma poesia, uma música popular ou erudita, um filme, uma peça, sempre me atraem mais quando contam uma história segundo esses critérios. Outro português, o Eça de Queiroz, dizia que “Contar uma história é a atividade mais generosa que um homem pode exercer”. Para os que pensam assim, e eu sou um deles, a literatura contemporânea está longe de ser um cenário de desolação. Eu, do meu modesto ponto de vista, me sinto bastante bem atendido por exemplo com os romances do Milton Hatoum, do Bernardo Carvalho, do Cristovão Tezza, do Bernardo Ajzenberg, ou com os contos do Rubens Figueiredo, etc. São todos ótimos narradores, e há muitos outros nomes disponíveis. Suponho que esse crítico tenha interesses diferentes dos meus em relação à literatura. Talvez ele julgue a literatura contemporânea, não só no Brasil, muito conservadora do ponto de vista formal. Talvez o irrite um movimento predominante de resgate dos gêneros, décadas atrás abolidos pelas vanguardas; um certo comodismo no uso da linguagem; um retorno ao compromisso narrativo. Esse diagnóstico pode se explicar por um certo saudosismo em relação às experimentações estéticas de vanguarda; por uma questão de patrulhamento ideológico, para que continuemos cometendo o erro que a Geração 70 cometeu; ou ainda por uma relação excessivamente racionalista com a literatura, como se ela devesse se obrigar a ser, antes de tudo, algo a serviço da verve intelectual deles, críticos especializados, e a concretize as suas expectativas. Os críticos que recusam a literatura brasileira contemporânea, quando vão ao cinema, consomem e elogiam estratégias narrativas e de comunicação com o público que são as mesmas usadas na literatura contemporânea. Mas, por algum motivo que me escapa, a grandeza da literatura deve ser mantida acima do leitor comum. Em resumo, essa visão de que nada presta na produção contemporânea esconde, a meu ver, uma postura essencialmente elitista, ou um delírio de vaidade. Isso não significa que nós escritores devamos “baratear” nossa obra para sermos acessíveis, mas o retorno dos gêneros, o uso de uma linguagem mais próxima ao leitor e a revalorização do enredo talvez sejam sinais de que a literatura redescobriu sua verdadeira prioridade, que não é nem a ideologia revolucionária, nem o público acadêmico e nem a crítica de jornal. A verdadeira prioridade é estabelecer o contato emocional entre o autor e os leitores. É dessa generosidade que falava o Eça.

• O mercado editorial brasileiro e a mídia especializada em livros parecem viver em mundos distintos, em constante antagonismo. Enquanto o mercado cresce de maneira espantosa (basta verificar o interesse de grandes grupos estrangeiros nos leitores brasileiros), os suplementos literários minguam, desaparecem, perdem importância. A que se deve este fenômeno? O mercado não precisa de uma mídia especializada?
O mercado editorial brasileiro absolutamente não cresceu nas últimas décadas. Pelo contrário, proporcionalmente ao tamanho da população, diminuiu, e muito. O nível médio de leitura do brasileiro, até onde sei, ainda não chega a dois livros per capta por ano, o que é pífio. Mas ficamos com a impressão de que o mercado cresceu porque os meios de produção foram muito facilitados pela editoração eletrônica, tornando possível se deixar um livro pronto para entrar na gráfica sem sair de casa. O mercado brasileiro se modernizou, sem dúvida, profissionalizou-se, mas isso não é crescer. Ele, na verdade, ficou mais macrocéfalo do que nunca; muita cabeça e pouco corpo, muitas editoras com poucos canais de distribuição e poucos pontos de venda, o que implica tiragens baixas, preços relativamente altos e, no fim da linha, poucos compradores. Quanto à vinda de grandes grupos estrangeiros, que eu saiba, eles vêem de olho ou no potencial de crescimento do mercado, o que significa uma aposta no futuro, ou, e isso é o mais comum, de olho nas compras governamentais. Então, se o mercado não cresceu, é natural que os espaços para se falar de livros na imprensa diminuam. Um segundo motivo para que tenham diminuído é que esses espaços, em geral, se deixaram dominar pela atitude acadêmica, que não é a mesma do leitor comum. Nesse sentido, as resenhas se distanciam do público e os jornais, sentindo isso, diminuem nosso espaço.

Rodrigo Lacerda, autor de “Outra vida”

• O senhor considera que já é possível medir o impacto da internet na atual produção literária brasileira? O senhor acompanha aos autores que circulam on-line?
Acho que a internet, apesar da influência que possa ter sobre as formas narrativas, influi sobretudo é ao fazer circular a produção que não encontra espaço no mercado editorial. Além disso, com os blogs, os escritores passaram a dispor de um lugar onde sua voz pode ser ouvida com mais freqüência. Os escritores não têm a dizer apenas o que está nos seus livros. Não sou um blogueiro assíduo, mas muitos colegas escritores são, e acho isso muito bom. Um espaço para alcançar públicos maiores, por incrível que pareça, não é algo tão fácil para o escritor de ficção. Em geral, acreditem, os escritores não recebem a palavra nem mesmo nas cerimônias em que são premiados!

• Há pouco tempo, assiste-se a uma proliferação de oficinas de criação literária pelo Brasil. Alguns autores se dizem “formados” em oficinas, algo muito comum nos Estados Unidos há décadas. Como o senhor avalia este fenômeno? Estas oficinas têm a capacidade de formar escritores?
Só uma universidade brasileira, que eu saiba, tem um curso próximo àquilo que os americanos já estão carecas de ter, e que chamam de creative writing. Entre nós, o curso é chamado de Produção Textual, e abarca prosa literária, poesia e prosa não literária (publicitária, institucional, jornalística, etc.), ensinando os alunos a variarem o registro de suas escritas de acordo com a função do texto. Talvez exista mais um ou dois cursos parecidos, mas ainda assim a oferta é mínima. Daí existirem tantas oficinas fora da academia. As universidades privadas brasileiras não abriram esse tipo de curso por julgarem-no deficitário, ainda que o afluxo de gente nas oficinas “informais” aponte para uma demanda. As públicas, porque não têm corpo docente preparado para isso, e assim a idéia morre na origem. Mas a inexistência desse tipo de curso é reflexo de um outro tipo de elitismo em relação à literatura. Ninguém estranha que exista uma faculdade de cinema, por exemplo. Ou de artes plásticas. Por que é estranho existir uma de redação criativa? Porque o verdadeiro conhecimento literário é logo associado ao gênio, o campo por excelência da criatividade infalível. Sendo assim, é natural que não haja receptividade nas academias para um curso que desmistifica isso, que mostra o quanto escrever é uma atividade como qualquer outra, que qualquer pessoa pode aprender, sem a obrigação de se tornar um grande escritor, mas se tornando capaz de pelo menos manejar as ferramentas. Os departamentos de letras atacam os cursos de creative writing dizendo que talento não se ensina, mas também tem um monte de medíocre saindo da faculdade de arquitetura, engenharia, medicina, música, artes plásticas, etc. É o mesmo preconceito que atinge, por exemplo, aquelas pessoas que resolvem fazer uma tese a partir do seu próprio romance. Nenhum departamento de teoria literária que eu conheça vê isso com bons olhos. E, no entanto, para um escritor isso pode ser um processo riquíssimo. E, do meu ponto de vista, mesmo para a coletividade é muito mais interessante do que milhares das exegeses inúteis e estapafúrdias sobre a obra da Clarice, do Guimarães e do Drummond que são carimbadas todo ano pelos setores de pós-graduação Brasil afora.

• Há também uma quantidade imensa de festivais, feiras, encontros, etc. espalhada por todas as regiões do País. O ambiente literário brasileiro passa por um bom momento ou tudo não passa de uma impressão de pouco resultado prático?
Acho que passa por um ótimo momento nesse aspecto. A quantidade de eventos literários que existe hoje é imensa, e tenho colegas que vão de um para o outro quase sem interrupção. Sobre todos eles reina a Flip, a meu ver, que aliás é modelo assumido por vários. Na Flip deste ano, muita gente criticou o fato de haver entre os convidados figuras midiáticas. Mas a verdade é que, quando você acompanha de perto o funcionamento das coisas, a organização do evento, a imensa maioria do público, os escritores menos famosos presentes, e até as próprias personalidades midiáticas, todo mundo, portanto, sabia muito bem que os convidados “comerciais” eram meros fogos de artifício para alegrar o papo durante 15 minutos. Não havia dúvida quanto a isso. Então a Flip me lembrou muito uma frase que li sobre a Academia Francesa, que dizia: “A Academia é a prova antiga, e sempre viva, de que existem em nosso país outros poderes além do dinheiro e da política. E isso não é pouco”. Se esses eventos literários têm resultado prático ao fomentar o hábito de ler, não sei. Mas eles têm para mim, sobretudo, significado simbólico, que é muito mais importante.

• O senhor compõe a comissão editorial da Serrote, uma revista que pretende ser “de ensaios, idéias e literatura”. Ela é, basicamente, destinada a uma elite cultural. Em participação no Paiol Literário, Bernardo Carvalho disse: “O Brasil tem uma elite muito grosseira, muito iletrada. Em comparação com a elite de outros países, a brasileira é especialmente ignorante, e cultiva e reproduz a ignorância para os seus filhos. Isso é muito chocante e revoltante”. O senhor concorda com esta afirmação? A elite cultural brasileira se difere muito da elite econômica? A Serrote pretende mudar alguma coisa neste panorama ou é apenas uma garrafa jogada no mar com uma mensagem dentro?
Acho que a circulação dos conteúdos culturais pode e deve acontecer. Embora ela obedeça a padrões que nem sempre me agradam. Décadas atrás, a tônica era banalizar melodias de Mozart e peças de Shakespeare para que as massas pudessem entendê-las, como se as melodias e as peças precisassem de ajuda para se comunicar, como se “a massa” fosse débil mental. Achávamos que assim promovíamos a democracia cultural. Hoje, levamos o Zeca Pagodinho para ser consumido pela elite, ou fazemos documentários sobre a miséria nacional, aos quais o simples ato de assistir já aplaca a consciência culpada das classes média e alta. Não sei se gosto de qualquer uma dessas estratégias. Acredito que a única avaliação artística realmente importante é a que brota da relação entre a obra e aquele que a está fruindo. Tudo é uma questão de “liga”, não de classe social ou de obediência a algum cânone. Não há regra, não há rigidez possível se você parte dos princípios da multiplicidade infinita da sensibilidade humana, e de que o livro só se completa na cabeça do leitor. Juntando esses dois princípios, eu não sei mais o que é conteúdo cultural de elite e conteúdo cultural popular, simplesmente porque isso não é estabelecido a priori. Depende de quem está consumindo aquele conteúdo, e da compatibilidade entre o seu momento e a obra. Os cânones servem para organizar minimamente o conhecimento da área, facilitando sua difusão, servindo de guia para quem está chegando e criando mínimos denominadores comuns para leitores de realidades diferentes. Mas devemos sempre mantê-los em seu devido lugar, sem deixarmos que tolham nossos gostos pessoais. Os cânones são positivos, mas arbitrários. São convenções. Nosso cânone pessoal precisa estar livre para se formar, abarcando todo tipo de forma artística, sem preconceitos, estabelecendo vínculos emocionais que não diferenciam Shakespeare da primeira história em quadrinhos marcante lida na infância, pois tudo tem o seu momento. Não devemos nos envergonhar das nossas paixões. Quanto à revista Serrote, ela se propõe a abrir espaço para textos que não são propriamente nem jornalísticos e nem têm tamanho para serem publicados isoladamente, no caso de ensaios, e para alguma produção literária, em geral contos. Mas temos textos bem curtos, que poderiam ser lidos por qualquer trabalhador, como o Tostão falando da importância do “passe” no futebol, por exemplo. E a revista é muito ilustrada, com dois ou três ensaios visuais por número, e isso é comunicação direta com qualquer um, de qualquer classe social, muito mais infalível que a das palavras, aliás. Eu, pessoalmente, não gosto de pensar que estejamos fazendo a revista para uma elite. Na composição da pauta, vamos do universo do samba e das histórias em quadrinhos até a micro-história de um quadro do pintor neoclássico Jacques-Louis David. Não fazemos diferença entre esses conteúdos, dando a eles o mesmíssimo tratamento editorial. Essa, a nosso ver, é a melhor maneira de difundir a liberdade da circulação cultural, de cima para baixo e vice-versa. Para terminar, vale perguntar o que realmente estamos chamando de elite intelectual. Só porque o sujeito é escritor o incluiríamos na elite intelectual? Ou jornalista cultural? Professor universitário? Ou ator e diretor de teatro? Historiador? Espero não estar fazendo demagogia ao dizer que a erudição, o aprendizado formal das coisas, embora seja uma ferramenta maravilhosa criada pela mente humana, é apenas parte do verdadeiro Saber. Para eu realmente acreditar no que eu digo quando falo “elite intelectual”, é preciso que a erudição esteja acompanhada por um respeito visceral pelo semelhante, por uma abertura para o mundo e suas ambigüidades, e muito, muito mesmo, por uma consciência de si mesmo. Isso vai além do simples domínio das pedras de toque do saber contemporâneo.

• O que o motivou a dedicar-se à literatura? Como foi o caminho percorrido desde seu início como leitor até chegar à constatação de que seria escritor?
Por falar em “elite intelectual”, eu nasci numa família de escritores. Meus dois avós foram escritores. A geração dos meus pais deu um descanso, mas agora aqui estou eu, parte dessa “elite intelectual”, e tentando chegar à verdadeira elite que mencionei acima. Na verdade, sou escritor porque não tive coragem de fazer faculdade de artes plásticas. Mas eu não queria ser pintor, queria ser chargista. J. Carlos, Álvarus, Sempé, Quino, Daumier, foram ídolos fundamentais para mim. Na época, via as pessoas, eu inclusive, como caricaturas delas próprias. De lá para cá refinei meu olhar, mas não abro totalmente mão dessa maneira de ver o mundo, porque ela me ensinou a rir de mim mesmo e a não levar ninguém 100% a sério. Alguém que se comporta como figurão imediatamente deixa de merecer esse posto, percebe? Isso a caricatura me ensinou. O que me puxou para a literatura foi um acidente. Eu estava terminando a faculdade de história e fui fazer um curso cuja pergunta essencial era: Que espécie de ciência é a história se o período colonial, sob o ângulo de um historiador marxista é uma coisa, de um historiador católico é outra, de um historiador das mentalidades é uma terceira, e assim por diante? Não seria a história, portanto, um discurso construído sob a convenção da veracidade, mas que era tão subjetivamente construído — de acordo com a pessoa e as circunstâncias que o produziram —, quanto os outros assumidamente livres da obrigação da veracidade? No caso, a literatura. Pois bem, o exercício final do curso foi escrever, sob a forma de um conto, um resumo da nossa tese acadêmica. O tema da minha futura tese seria uma comparação entre o teatro renascentista inglês e o ibérico. Um Fla-Flu tipo Shakespeare x Camões. Então resolvi situar meu conto na Inglaterra Elisabetana. Assim nasceu O mistério do leão rampante, e assim morreu minha carreira como historiador.

• Como é o seu processo criativo, seu processo de trabalho a cada novo livro? De que maneira nascem seus livros?
Hoje em dia eu vejo que cada livro, assim como impõe uma história e uma linguagem, também impõe um ritmo de trabalho. Não digo um método, pois o livro pode impor exatamente uma ausência de método. Existem escritores que já nascem com o seu estilo e universo ficcional amadurecidos, existem aqueles que os amadurecem ao longo de anos, existem aqueles que fazem cada livro muito diferente do livro anterior. Eu, não por opção, pertenço ao terceiro grupo. Gostaria de não pertencer, sobretudo por dois motivos. O primeiro é que a cada livro você tem de reinventar a sua maneira de escrever, reajustar a sua sensibilidade para outro tipo de personagem, e isso dá muito trabalho, leva mais tempo e provoca muita ansiedade. Em segundo porque fica mais difícil você constituir um público seu, cativar a fidelidade dos leitores a ponto de eles acompanharem a sua carreira. Sendo os livros muito diferentes entre si, é grande a chance de o leitor, gostando do primeiro, não gostar do segundo e desistir de você. Gostaria de saber por que eu mudo tanto. Só sei que gosto da idéia de passar de um universo para o outro, de mudar a forma de ver meus personagens e o mundo, de calibrar a linguagem de acordo com todas essas mudanças (a linguagem é a chave geral). Gosto de reelaborar os gêneros, fazendo-os do meu jeito, e de ficar pulando de um para o outro. O preço é não me fixar apenas em um estilo, ou em um universo ficcional, e abrir mão de qualquer segurança a cada livro. Ainda bem que essas opções não são controláveis, pois eu sofreria ainda mais se tivesse de tomá-las conscientemente. Ainda bem que a literatura não é uma aquisição racional, e sim uma segunda natureza, que leva a gente a despeito das nossas opções conscientes. Abro mão de muita coisa para que a literatura possa penetrar a minha vida dessa forma, tão orgânica e natural.

• De que maneira a iniciativa privada e os governos podem (e devem) fortalecer o hábito da leitura em um país formado por uma estrondosa leva de analfabetos (puros ou funcionais)?
O Estado brasileiro é um dos maiores compradores de livros do mundo, e isso não é pouco. Mas é impossível fazer alguém gostar de ler, em sala de aula, se o professor não está suficientemente preparado para transmitir esse prazer. Ainda há professores que, por exemplo, sentam a turma em roda e pedem para que cada aluno leia um parágrafo. Claro que ninguém se oferece, e então, a cada parágrafo, a leitura morre, as crianças se dispersam, enquanto a professora fica perguntando “Quem vai ler agora?”, “Gente, ninguém quer ler?”. Quantas vezes você viveu isso no seu tempo de menino? Eu vivi milhares. Ora, não basta dizer que ler é bom, você tem que fazer a experiência da leitura ser algo emocionante, e não há de ser desse jeito. O apego à leitura só é transmissível quando vai além do discurso vazio. Agora, num outro plano, para que a leitura fosse respeitada, seria preciso que os autores fossem socialmente valorizados. Além dos críticos que simplesmente fazem tábula rasa de todos os escritores contemporâneos e se colocam numa posição superior, como o que você citou antes, outro dia um jornalista cultural ousou escrever que “Um escritor não precisa de incentivos financeiros, um escritor precisa de papel e caneta”. Veja como o preconceito contra a atividade literária é profundo, pois essa frase, dita por um “dos nossos”, é um perfeito reflexo do desprestígio do escritor na sociedade brasileira. Afinal, como financiar o tempo necessário para usar o seu papel e a sua caneta? Por que os outros artistas merecem incentivo e o escritor não?

• Que conselho o senhor daria a alguém que pretenda dedicar-se à literatura como escritor?
Faça seu próprio cânone. Quanto mais idiossincrático, mais ele refletirá o seu processo de comunhão com a literatura. Mas esteja sempre pronto para rever suas opiniões.

* Colaborou Vitor Mann.

Leia resenha de Outra vida

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

Rascunho