A tragédia da primeira impressão

Em "Outra vida", Rodrigo Lacerda trata do que há por trás das máscaras sociais
Rodrigo Lacerda, autor de “Outra vida”
01/09/2009

Rodrigo Lacerda fez uso incomum de lugares-comuns em Outra vida. O romance tem como um de seus pressupostos a idéia de que as aparências, em geral, enganam. A longa narrativa ainda insinuará que os opostos não se atraem, os opostos se afastam (o escritor só não prova nada porque não escreveu uma tese, e sim uma obra de arte).

Um casal está dentro de uma estação rodoviária de uma grande cidade. Os bilhetes já foram comprados. O leitor não sabe qual será o possível destino dos personagens. A narrativa faz saber que aquele homem e aquela mulher, os protagonistas de Outra vida, podem viajar para uma cidade do interior, distante de onde estão no presente narrativo. Em um primeiro momento, não é possível saber nada, absolutamente nada, a respeito dos dois. Mas o livro deixará claro, posteriormente, que eles não foram, como diz o clichê, feitos um para o outro. Eles estarão separados, em um relativo breve espaço de tempo.

O tempo é um elemento muito importante neste livro. Os dois personagens, que não são apresentados por nomes, mas por marido e esposa, ele e ela, eles — enfim — estão no presente, no presente narrativo, e a partir, não de uma madeleine proustiana, mas, de um objeto do cotidiano, de repente, um deles pode olhar para a capa de uma revista e recordar de algum episódio do passado. É a partir dessas divagações, dos personagens, que os leitores saberão, por exemplo, que a mulher tem um amante, e que esse amante pretende encontrá-la na rodoviária para impedir que ela entre no ônibus.

O conceito do fragmento, que, para muitos, define o imaginário da sociedade contemporânea (e a própria vida nesse século 21), está presente em Outra vida. O livro é dividido em capítulos, alguns deles trazendo, como subtítulos, a marcação de horas e minutos. Por exemplo, o romance “começa” às 7:15. Em seguida, outros capítulos trarão as marcações 7:46, 8:05, 8:25, 8:26 até 9:30. Esse é o “tempo” de toda a trama, desde a chegada do casal na estação rodoviária até o momento em que um ônibus partirá rumo a uma cidade do interior.

No entanto, o tempo cronológico, o medido por relógio, de ponteiro ou com água (clepsidra), é relativo, como sabemos — já faz tempo. Um minuto, por exemplo, pode vir a significar muito, do ponto de vista narrativo. O personagem masculino, em um único minuto, revelará o motivo que o fez decidir abandonar a metrópole. Ele e a esposa conheceram-se em uma cidade do interior, onde ambos nasceram. Ele é filho de um açougueiro, tem origens humildes e não avançou (muito) nos estudos — não fez curso superior, por exemplo. Ela é filha de uma família que, no passado, teve uma empresa rentável, mas que durante a passagem do tempo viu o negócio entrar em falência. Na capital, ela busca (e consegue) um bom emprego, mais que isso: deseja conhecer (novas) pessoas, freqüentar (novos) bares, estar em meio a happy hours, etc. Mas o salário do marido não tem saldo para pagar essa vida. O marido é um funcionário público que ganha o salário (miserável) de um funcionário público de pouca estatura. A única saída que ele encontrou (para ter mais dinheiro) foi participar de um esquema de corrupção. Mas a ação (canalha) não deu certo. Ele, o marido, flagrado, passou a ser apontado como corrupto. Sem condições de permanecer onde estava, decide abandonar tudo e retornar à terra natal. Mas a mulher pensa de outra maneira.

Rodrigo Lacerda por Osvalter

Essa personagem feminina (essa esposa) não foi feita a partir da costela desse personagem masculino (o seu marido). Ele (o marido) quer uma existência sem ruídos, com mais tempo dentro de casa. Diferentemente dela, criada a partir de hábitos (arraigados) de consumo, consumo de objetos fúteis e descartáveis. O amante dela trabalha no sistema burocrático em que o marido (dela) é uma das menores engrenagens. Ela (a esposa) preferiria que o marido (dela) fosse mais ambicioso. Mas isso (a elocubração desse parágrafo) não passa de uma hipótese. Eles (marido e mulher), de fato, não combinam. Estarão definitivamente separados antes do final da longa narrativa.

O horário 8:25 aparece duas vezes, em seqüência, e dá a entender que o mesmo momento é diferente para cada um dos personagens (como cada segundo é um só para cada ser humano). O marido vai entrar no ônibus e partir em direção de sua cidade natal, destino, em seu entendimento, de onde ele nunca deveria ter saído. A esposa permanecerá na cidade grande, uma vez que pretende expandir os (seus) horizontes, e conhecer novos homens, talvez até continuar sendo a outra de seu amante, que é casado. O marido e a esposa (personagens centrais dessa ficção) não se afinam. Nunca se afinaram (apesar de terem insistido ou experimentado uma vida a dois). Mas eles tiveram uma filha, o legado de uma relação fracassada, filha essa que terá relativa importância no enredo, mas, que, no desfecho, adquire um papel arrebatador, e mostra — direta e indiretamente — que Rodrigo Lacerda conseguiu elaborar uma experiência ficcional com precisão, inteligência e “mão de escritor”.

Leia entrevista com o Autor

Outra vida
Rodrigo Lacerda
Alfaguara
180 págs.
Rodrigo Lacerda
Carioca, de 1969, que vive em São Paulo. Assina, como editor, a revista Serrote (do Instituto Moreira Salles). Publicou diversos livros, por exemplo, O mistério do leão rampante (1995), A dinâmica das larvas (1996), Fábulas para o ano 2000 (1998), Tripé (1999), Vista do Rio (2004) e O fazedor de velhos (2008).
Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

Rascunho