Bartolomeu Campos de Queirós

"A literatura tem uma capacidade tão grande de nos renovar que o texto que escrevi ontem não me serve para o hoje."
Bartolomeu Campos de Queirós no Paiol Literário. Foto: Matheus Dias
01/07/2011

No dia 7 de junho, o projeto Paiol Literário — promovido pelo Rascunho em parceria com a Fundação Cultural de Curitiba, o Sesi Paraná e a Fiep — recebeu o escritor Bartolomeu Campos de Queirós. Nascido em Papagaio (MG), em 1944, ele tem 66 livros publicados (alguns deles traduzidos para inglês, espanhol e dinamarquês) e é considerado um dos principais autores da literatura infanto-juvenil brasileira. Acaba de lançar Vermelho amargo (leia resenha na página 6) — seu primeiro livro voltado ao público adulto. Queirós cursou o Instituto de Pedagogia em Paris e participou de importantes projetos de leitura no Brasil. Foi presidente da Fundação Clóvis Salgado/Palácio das Artes e membro do Conselho Estadual de Cultura, ambos em Minas Gerais. É idealizador do Movimento por um Brasil Literário, do qual participa ativamente. Por suas realizações, recebeu condecorações como Chevalier de l’Ordre des Arts et des Lettres (França), Medalha Rosa Branca (Cuba), Grande Medalha da Inconfidência Mineira e Medalha Santos Dumont (Governo do Estado de Minas Gerais). Ganhou ainda o Grande Prêmio da Crítica em Literatura Infantil/Juvenil pela APCA, Jabuti e Academia Brasileira de Letras. Na conversa com o jornalista Rogério Pereira no Teatro Paiol, em Curitiba, Bartolomeu Campos de Queirós falou de vida e morte, da necessidade da escola redescobrir o seu papel de formação e transformação do indivíduo, de como formar crianças leitoras, do encantamento que as palavras causam, da literatura como um lugar de dúvidas, do seu início como leitor e escritor, da sua descrença no ser humano, entre outros assuntos. Leia a seguir os melhores momentos do bate-papo.

• A palavra ao leitor
O grande patrimônio que temos é a memória. A memória guarda o que vivemos e o que sonhamos. E a literatura é esse espaço onde o que sonhamos encontra o diálogo. Com a literatura, esse mundo sonhado consegue falar. O texto literário é um texto que também dá voz ao leitor. Quando escrevo, por exemplo: “A casa é bonita”, coloco um p0nto final. Quando você lê para uma criança “A casa é bonita”, para ela pode significar a que tem pai e mãe. Para outra criança, “casa bonita” é a que tem comida. Para outra, a que tem colchão. Eu não sei o que é casa bonita, quem sabe é o leitor. A importância para mim da literatura é também acreditar que o cidadão possui a palavra. O texto literário dá a palavra ao leitor. O texto literário convida o leitor a se dizer diante dele. Isso é o que há de mais importante para mim na literatura.

• Formação de leitor
Nasci em uma cidade pequenininha no interior de Minas Gerais. Era uma cidade que tinha três ruas. A rua de cima, a de baixo e a do meio. Hoje o poder público já chegou lá, e a rua de cima agora se chama Visconde do Rio Branco. A do meio, Juscelino Kubitschek; e a outra, Benedito Valadares. O poder público entra e tira aquilo que o povo criou e põe o nome que ele inventa, pois precisa homenagear alguém, independentemente da cultura daquela gente. Quando nasci (em 1944), devia ter uns cinco mil habitantes. Meu pai era caminhoneiro e minha mãe era uma leitora, uma grande leitora e dona de casa. Devo o meu gosto pela palavra também ao meu avô. Talvez ele tenha me alfabetizado. Meu avô morava em Pitangui, uma cidade perto de Papagaio, ganhou a sorte grande na loteria e nunca mais trabalhou. Ele cultivou uma preguiça absoluta. Levantava pela manhã, vestia terno, gravata e se debruçava na janela. Todo mundo que passava falava: “Ô, seu Queirós!”. Ele falava: “Tem dó de nós”. Só isso. O dia inteiro. Tudo o que acontecia na cidade, ele escrevia nas paredes de casa. Quem morreu, quem matou, quem visitou, quem viajou. Fui alfabetizado nas paredes do meu avô. Eu perguntava que palavra é essa, que palavra é aquela. Eu escrevia no muro a palavra com carvão, repetia. Ele ia lá para ver se estava certo. Na parede da casa dele, somente ele podia escrever. Eu só podia escrever no muro. Esse meu avô tinha um gosto absoluto pela palavra e era muito irreverente. Eu era o grande amigo dele. Ele falava algumas coisas comigo, ele tinha umas coisas interessantes e que ficaram. Em frente à casa dele moravam três moças solteiras. Maria da Fé, Maria da Esperança e Maria da Caridade. Eu sabia quando elas passavam na rua porque o meu avô falava três vezes: “Tem dó de nós, tem dó de nós, tem dó de nós”. A Esperança morreu e o meu avô me falou: “Quem disse que a Esperança é a última que morre?”. Quando o cinema foi inaugurado, era um galpão muito grande, com um lençol no meio. Quem era alfabetizado via o filme de frente porque não podia botar o lençol no fundo do barracão, pois desfocava a imagem. O lençol ficava no meio. Os alfabetizados ficavam na frente e liam. Os analfabetos ficavam atrás do lençol e pagavam meio ingresso. Viam o filme ao contrário, mas a legenda não era problema. Ninguém lia. E o meu avô falava: “Na terra de cego quem abre cinema é doido”.

• Criado com a metáfora
Meu avô tinha um encantamento com as palavras. Eu fui aprendendo com ele a cultivar esse encantamento. Lembro que na casa dele tinha uma copa muito grande. Ele ficava sentado na ponta da mesa fazendo cigarros para o dia seguinte. Havia um Cristo crucificado na parede. De vez em quando, ele levantava a cabeça e falava para mim: “Sofreu, né? Sofreu demais. Sofreu tanto. Mas morreu gordo, você não acha?”. Era toda uma trama que me deslocava. Já fui criado com a metáfora. Tive uma infância junto com as metáforas. Outra coisa que me ajuda na literatura é ter nascido de sete meses. Fui sempre muito fraquinho. Era miúdo, fraco, tratado com cuidado. Quando adoecia, a mãe chamava o médico por via de dúvida. Mas por via de dúvida, ela mandava benzer; e por via de dúvida, ascendia uma vela; e por via de dúvida, me dava um chá e eu, então, melhorava por via de dúvida. Depois, cheguei a uma conclusão: Quem sabe as coisas faz livro didático e quem não sabe faz literatura. Se você tem uma coisa a afirmar, você não tem que fazer literatura. Literatura é uma conversa sobre as dúvidas. É uma conversa sobre as delicadezas, sobre as faltas. Não é uma conversa crua como desejam as ciências exatas. A literatura é mais delicada. Ela trabalha com a dúvida, com as incertezas, com as inseguranças, com as faltas, que são coisas que nos unem. Tive uma infância rica. Tive um avô e uma experiência muito boa com ele. A minha mãe era uma leitora. Não havia em casa literatura infantil. Eu lia os livros que a minha mãe lia: A toutinegra do moinho (Emílio Richebourg), As mulheres de bronze (Xavier de Montépin). Também ficou uma coisa que hoje conto sem problemas. Quando a minha mãe morreu, eu tinha seis para sete anos. Ela ficou doente por muitos anos. Eu sempre a conheci um pouco doente. Minha mãe cantava muito bonito, ela era soprano. Quando a dor era muito forte, quando a dor pesava muito, sabíamos que a morfina não era suficiente, a minha mãe cantava. Ela cantava umas cantigas de Carlos Gomes. A voz dela atravessava a casa e o quintal. Então, a gente sabia que ela estava com muita dor. Outro dia, estava pensando que eu também, quando dói muito, escrevo. É a mesma coisa. Quando pesa muito, eu escrevo. Hoje, não fico na janela como meu avô ficava. Mas fico o tempo todo em frente ao Windows. Trocamos os lugares, mas continuamos na janela.

Bartolomeu Campos de Queirós no Paiol Literário. Foto: Matheus Dias

• Construir o mundo com letras
O meu avô brincava muito comigo usando as palavras. Ele escrevia “azul” e me pedia para escrever outra palavra na frente. Eu escrevia “preto”. Ele falava: “O azul hoje é quase preto”. Ele fazia uma frase usando as duas palavras. Eu ficava incomodado como ele, com toda a palavra, dava conta de fazer uma frase. Com duas palavras, construía uma oração. A metáfora é muito interessante para o escritor. A metáfora é onde o escritor se esconde e põe asas no leitor. Pela metáfora, eu me escondo, mas ao mesmo tempo ponho asas no leitor. Vai aonde você quiser. Você está livre para romper com tudo. Acho que o leitor é tão criador quanto o escritor. O leitor cria muito. É o que o Umberto Eco fala — a estrutura ausente na obra. Você gosta de uma obra não pelo que está escrito, mas pelo lugar que ela o levou a pensar. Isso é muito interessante. Michel Foucault fala que o que lemos não é a frase que está escrita. Lemos o silêncio que existe entre as palavras. É ali que a literatura se faz. Vou falar bem francamente. Hoje, chego à conclusão de que escrevo porque quero dizer umas coisas e acho a palavra oral muito perigosa. Escrever é mais fácil do que falar. Quando escrevo e não gosto do texto, eu o rasgo. Jogo fora, apago, deleto, sumo com aquilo. Mas quando falo uma coisa errada, não recolho a palavra nunca mais. Isso me incomoda muito. Sou extremamente silencioso em minha natureza. Tenho muito medo da palavra oral. Sinto muitas vezes que as palavras me ferem ou eu firo alguém com essa palavra. Não recolho nunca mais essa palavra que cai no ouvido do outro. Talvez escreva por medo da fala.

• Literatura afetiva
Quando terminei o curso primário, fui estudar como interno em Divinópolis. Lá, com onze ou doze anos, encontro o professor de literatura José Dias Lara. Ele me introduz na literatura. Com ele, começo a ler Machado de Assis, José Lins do Rego, José de Alencar. Com uma orientação maravilhosa, devo a esse professor o meu gosto pela literatura. Sempre fui um bom leitor. Tive uma professora muito interessante. Quando entrei na escola, já sabia ler e escrever — o meu avô já havia me ensinado. Mas tinha tanta vontade que a dona Maria Campos — minha primeira professora — gostasse de mim, que resolvi esquecer tudo. E aprendi tudo outra vez. Ela ficava tão feliz comigo aprendendo tudo o tempo inteiro, rápido. E tudo o que queria na vida era que ela gostasse de mim, mais nada. Quando dava aula para professores em especialização, brincava com eles. Acho que a criança quando entra na escola, não aprende porque vai prestar concurso, vestibular, nada disso. Ela aprende para ser amada por aquele que sabe. E o professor é aquele que sabe e ela quer ser amada por aquele que sabe. Acho que a aprendizagem no início da infância está na ordem puramente do afetivo. Sem isso não dá. Aprendi com Merleau Ponty que a primeira leitura que a criança faz na sala de aula é a do olhar do professor. Há pessoas que quando nos olham nos afastam. Outras, quando nos olham, nos acariciam. Há crianças que não aprendem porque o olhar do professor não deixa. Há criança que não usa a liberdade porque tem medo do olhar do professor. O olhar do professor imobiliza. Muitas vezes, jogamos nas costas dos métodos a não aprendizagem da criança, quando, às vezes, a aprendizagem da criança é interditada pelo olhar do professor, que é a primeira leitura que ela faz. Merleau Ponty descobriu uma coisa fundamental. Um dia, ele olha muito tempo para o sol e descobre que olhar dói. Ele começa, então, a fazer uma análise dessas coisas. Começa a perceber que ouvir uma música tão bonita às vezes pode arrepiar o meu corpo. Então, ouvir também é tátil. No gosto, posso acordar a memória. Então, o homem é uma coisa inteira, não é dividida em apenas cinco sentidos. Quando se trabalha com a infância é muito bom nos policiarmos sobre o olhar que destinamos ao outro e que muitas vezes interdita o outro. Não permite que a liberdade se faça ali. As crianças precisam muito de nós, adultos. Elas precisam muito de nós para crescer e elas sabem disso. É importante e bom fazermos essa leitura.

• Formação do professor
Estou muito afastado dos processos educacionais. O homem é o único animal que pode ser educado. Todos os outros animais podem ser adestrados. Educar pressupõe deixar o outro ser dono do seu próprio destino. A educação se faz pela liberdade. Liberdade que você dá ao outro para que ele escolha o seu destino. Vejo que os processos de educação, o que chamamos de escola, não deixam de ser processos de adestramento. Não é uma educação plena, é um processo de adestramento. É uma criança sujeita ao desejo do professor. E é o professor sujeito ao desejo do poder político. Então, a criança é sem autonomia. Ela deveria ser o senhor da coisa. No entanto, é o objeto. A escola não forma o leitor de literatura. A escola só ensina. Isso é da própria história da educação brasileira, quando nos anos 1960 o MEC-USAID (Série de acordos produzidos, nos anos 1960, entre o Ministério da Educação brasileiro (MEC) e a United States Agency for International Development (USAID). Visavam estabelecer convênios de assistência técnica e cooperação financeira à educação brasileira. Inseriam-se num contexto histórico fortemente marcado pela concepção de educação como pressuposto do desenvolvimento econômico.) chega ao Brasil e traz os métodos americanos para a escola brasileira. Na revolução de 64, Jarbas Passarinho oficializa a reforma da educação e começa a dizer que a escola só pode ensinar aquilo que pode ser medido, só o que é mensurável. Tira-se todo ensino afetivo da escola, pois a afetividade não é mensurável. Você pode medir muitas crianças, mas não pode medir qual delas é a mais feliz. A escola brasileira, da década de 1960 para cá, ficou unicamente tentando ensinar só o que é mensurável. Entrou no regime da economia, dos números. Há coisas na educação que não podem ser mensuráveis, são intuitivas, estão no campo da percepção, do afeto. Isso foi tudo jogado fora. De 1964 para cá, quando os americanos começaram a dar as normas para a educação brasileira, não se pode falar de honestidade porque não é mensurável; não se pode falar de fraternidade e amor, pois não são mensuráveis. Quando o professor entra na sala de aula, tem que esquecer a vida dele do lado de fora. Ali dentro, ele não tem vida própria, é um facilitador da aprendizagem. Fomos trazendo isso até os dias de hoje e perdemos. A literatura, como não é mensurável, perde totalmente o sentido. É muito interessante porque quando começa a ditadura, a literatura se torna muito importante. Todas as escolas liam uma história considerada literatura. Era uma história de um passarinho que estava preso em uma gaiola e todo o dia de manhã a criança levantava, trocava o alpiste, a aguinha e o passarinho cantava, cantava. Um dia, o menino esqueceu a porta aberta e o passarinho voou e foi para cima de uma árvore. Aí, cai uma chuva forte e ele precisa se esconder em uma calha do telhado, vem um gato e avança. Ele corre para o esgoto e vem um rato. Até que o passarinho não agüenta essa liberdade e volta para a gaiola, fecha a portinha e continua cantando muito feliz. É isso que a ditadura quis falar que era literatura. Isso circulou no Brasil de cabo a rabo. Era a grande obra literária.

Bartolomeu Campos de Queirós no Paiol Literário. Foto: Matheus Dias

• Encantar o outro
A literatura começa a fazer isso com as crianças. Qual é o personagem principal? Qual o pedacinho de que você mais gostou? E mesmo que o menino goste do demônio, tem de falar que gostou do anjo, pois a escola não admite que se goste do demônio. Mesmo que goste da bruxa, tem de dizer que gosta da fada. A escola não dá conta dessa liberdade que nós temos. Essa simpatia que carregamos pela bruxa, pela sacanagem do demônio. Mas na escola não pode, a escola tempera isso. Tem escola servil. A literatura não é servil. A literatura não serve a nada e a escola foi feita para servir alguém, ou a um partido político, a um ideal, enquanto a literatura foi feita apenas para encantar o outro. A literatura é feita de fantasia. Tudo o que penso, posso escrever. Nada é interditado, tudo posso dizer, desde que com uma forma elegante, bem organizada. Posso até dizer “os livro”, “os peixe nada”. Posso até dizer, mas propositadamente, conhecendo uma gramática profundamente. Aí, posso dizer qualquer coisa que quero. Só rompemos quando dominamos. Caso contrário não há rompimento. É preciso uma tradição para romper. A literatura é essa coisa exagerada de fantasia. A gente só fantasia o que não temos. Não fantasiamos o que temos. Então, a literatura é feita de falta. O que escrevo é o que me falta. É isso que a literatura faz. A literatura é o lugar da falta. Para a escola é muito difícil cuidar da liberdade. A liberdade é muito fascinante, muito boa. A liberdade é uma coisa extremamente exagerada, bonita, clara. E a escola não dá conta disso. A escola é para conter. Criança educada é criança contida. A escola de hoje acha que esse menino é educado porque antes de responder, ele conta até dez, porque ele senta com a perna cruzada, porque ele come com a boca fechada. Todo contido é educado. Todo expansivo é mal-educado.

• Ser escritor
Estava estudando fora do Brasil (início da década de 1970), no Instituto Pedagógico da França, era bolsista e comecei a sentir saudade do Brasil. Morava perto de um jardim que tinha um lago. No fim de semana, sentava-me neste jardim para ler e sentia saudade do Brasil, de comer feijoada, de dormir na cama com lençol passado, dos meus amigos. Nunca pensei em ser escritor. Um dia, pensei: por que você não pensa em uma coisa que nunca pensou? E tinha o lago e sempre vinha um peixe e botava a cabeça do lado de fora. Havia várias gaivotas que mergulhavam no lago e tornavam a sair. Comecei a olhar aquilo e a pensar que cada coisa tinha um lugar. Se o peixe saísse fora da água, morreria afogado no ar. Mas se a gaivota ficasse dentro da água, morreria afogada. Comecei a olhar os dois elementos da natureza e descobri uma coisa que achei bonita: tanto o peixe quanto o pássaro não deixa rastro por onde passa. Não ficam caminhos. Ele chega, se instala naquele lugar e todo vazio é caminho. E toda a água é caminho. Fiquei encantado com o peixe e o pássaro por não deixarem rastro. Então, escrevi o texto O peixe e o pássaro para aliviar a minha saudade. Quando volto ao Brasil, entro em um concurso — a primeira edição do prêmio João de Barro, da Prefeitura de Belo Horizonte. Mandei meu texto e ganhei o prêmio. Não sabia que era escritor. Ganhei o prêmio e fiquei feliz, pois tinha um dinheiro. Fiquei mais feliz ainda porque um dos jurados era a Enriqueta Lisboa, que me telefonou para dar a notícia. Ela quis me conhecer e ficamos muito amigos. Havia um crítico literário no Jornal do Brasil que se chamava Dom Marcos Barbosa. Ele leu O peixe e o pássaro e escreveu uma crônica, aconselhando o Carlos Drummond de Andrade a ler o meu livro, pois era uma receita para viver no mosteiro. Esse foi um texto que escrevi para mim mesmo. Para me fazer carinho naquela solidão que sentia em Paris. Hoje, brinco muito ao afirmar que escrevemos para fazer carinho na gente. Tem horas que a única coisa que posso fazer por mim é escrever. Fazer um pouco de carinho em mim.

• Não ler depois de impresso
Tem coisas que não me perdôo. Ganhei o prêmio Jabuti com um livro chamado Ciganos. Quando escrevi Ciganos, viajei para a Europa e estava no norte de Portugal com o sul da Espanha. O livro tinha acabado de sair no Brasil. Entrei em um acampamento de ciganos espanhóis e uma cigana veio e me perguntou: “Queres ver a tua sina?”. Eu pensei: escrevi o Ciganos e não usei uma única vez a palavra “sina”. Tive um arrependimento de me matar. Como é que você escreve um texto sobre os ciganos e não coloca a palavra sina? Aí, fiz um propósito de nunca mais ler nada meu depois de impresso. Não leio nada porque vou querer escrever de novo, porque já sou outro. A literatura tem uma capacidade tão grande de nos renovar que o texto que escrevi ontem não me serve para o hoje.

• Preocupação com o público
Não tenho preocupação com o público. Vocês já assistiram ao filme A festa de Babete? É isso, ela foi para a cozinha e fez o melhor que ela podia. Só isso. Vou para o escritório e faço o melhor que posso. Àquela hora não tem destinatário. Se tiver destinatário, não é mais literário. Se entrar no escritório e pensar: vou escrever um texto para criança, já me distancio dela. Já me coloco no lugar de adulto, me distancio da infância. Tenho muito medo do “escrever para criança”. Parece que estou em um lugar muito legal, que estou bem feliz, bem disposto, alegre e vou ensinar esses “coitadinhos” a chegar nesse lugar em que estou. Eu tenho horror disso. Quero mostrar para a criança que também cresci, mas tenho muita insegurança, muita tristeza, muita alegria, muita saudade. Na minha obra, falo de morte, falo de tudo. Quando escrevo e quero que a criança seja leitora, faço uma frase mais curta, uma ordem mais direta, um parágrafo menor, porque o fôlego da criança é pequeno. Quando escrevo, preciso ler o texto em voz alta para saber se ele cabe na minha respiração. Às vezes, ao ler o texto em voz alta, percebo que é preciso transformar uma frase em duas, colocar um ponto final, dar um jeito porque está muito longa. Quando a emoção é muito forte, tenho que mudar de folha. Faço muito isso, mas quase que protegendo o leitor. O conteúdo, não. As crianças dão conta. As crianças são muito mais fortes do que nós. Quando se chega à idade que cheguei, descobre-se uma coisa interessantíssima: a vida não é um processo de soma, é um processo de subtração. Viver um dia é ter menos um dia. Hoje tenho muito menos dias para subtrair. A criança tem muito mais para viver do que eu. Ela é muito mais intensa do que eu. Ela tem muito mais pela frente do que eu. O meu pela frente é pouco. É perigoso quando a gente pensa que vai escrever para a criança porque a infância é o lugar que jamais poderei estar a não ser pela fantasia. E a criança está lá em realidade. Às vezes, os adultos, os pais, os professores ou os escritores, se sentem tão ameaçados porque a criança está em um lugar que indiscutivelmente já perdi, irremediavelmente nunca mais poderei estar. Então, começamos a querer trazer essa criança o mais depressa possível para o lugar onde estou. Aí, você começa a assaltar a infância da criança. Tenho muito medo desse assalto. Hoje, muita escola é considerada boa porque rouba a infância da criança muito cedo. Que aquele professor é muito bom porque rouba a infância da criança muito cedo. Eu vejo isso com muita clareza. É preciso deixar a criança viver a sua infância, com suas inseguranças, seus medos, suas tristezas, suas fantasias.

• Espantado com a vida
Você não sabe que está em coma. Se tivesse morrido, não teria sabido. Quando voltei, soube que havia ficado em coma sessenta e nove dias. Viver, para mim, é um espanto muito grande. Depois desse período, fiquei muito espantado com a vida. Nascer é um ato extremamente arbitrário. Não fui consultado se queria nascer e isso me pesa muito. Ninguém me perguntou se eu queria nascer, depois não escolhi nem mãe nem pai. Não escolhi o país, nem o idioma que queria falar, nem a cor que queria ter. Ninguém me perguntou nada. É um dos fatos mais arbitrários do mundo. Escrevo neste livro (Vermelho amargo) que a dor do parto é também de quem nasce. Outra coisa arbitrária é morrer, porque você não pediu para nascer. E quando vê a luz do mundo, a cor, a alegria do mundo, alguém fala que você vai morrer. Morrer é outra coisa arbitrária. Saber que é uma experiência individual. Só posso nascer do meu parto e só posso morrer da minha morte. Por mais que ame o outro, são coisas que não posso fazer no lugar dele. Não poder morrer no lugar de ninguém é uma coisa tão arbitrária. Uma educação que não trabalha com isso passa ao largo. Perde o cuidado com a vida. A educação que não tem esse cuidado, que nascer é ganhar o abandono. Nascer é ser expulso do paraíso, é andar com a própria perna, é falar com a própria boca, é ouvir com o próprio ouvido. Nascer é o abandono e é isso que nos faz ter compaixão pelo outro. A compaixão surge com a consciência desse abandono, com o medo da morte. É aí que criamos uma paixão pelo outro. Essa compaixão surge dessa nossa fragilidade, que é absoluta. E nós não falamos mais nisso. A literatura para criança, às vezes, não fala disso. Tenho um livro — Até passarinho passa — que fala da morte. A morte nos espanta tanto que não queremos nem pensar. Mas é o que nos segura.

Bartolomeu Campos de Queirós no Paiol Literário. Foto: Matheus Dias

• A palavra desestabiliza
Um dia estava trabalhando em casa e deitei no chão. Tenho às vezes uma dor na coluna. Deitei no chão do escritório. Tinha feito muita coisa naquele dia. De repente, vi uma formiguinha descendo depressa a parede branca do escritório. Olhando para ela, fiquei tão abismado. Eu sabia fazer tanta coisa, mas não sabia quem botou o desejo do açúcar no coração da formiga. Aí, a literatura não dá conta. Os pequenos gestos da natureza me encabulam muito. Sei que a palavra não dá conta. Mesmo sabendo que é a palavra que organiza o caos. No Gênesis, Ele veio e disse: “Faça-se a luz!”. E a luz se fez. Foi a palavra que organizou o caos. Você vai ao psicanalista porque está em desordem e acredita que a palavra irá te organizar. A palavra cura. De repente essa palavra não dá conta de dizer muita coisa. Ao mesmo tempo a palavra desestabiliza. A palavra é uma coisa muito pesada. Nossa Senhora ficou grávida da palavra do anjo. O anjo chegou, disse que ela seria mãe e ela acreditou. A palavra tem esse poder transformador.

• Movimento por um Brasil Literário
Andei pensando muito antes de fazer o Movimento por um Brasil Literário. Conversava muito com o pessoal da Fundação Nacional do Livro sobre como a escola não pode ser a única responsável pela formação do leitor. A escola não pode e nem dá conta disso. Se a criança chega em casa e não encontra nem o pai, nem a mãe, nem avó lendo, como é que a escola quer que ela leia? Ela não vê isso acontecendo na vida. Achei que era preciso mobilizar toda uma sociedade em função da leitura literária. Não deixar exclusivamente na mão da escola uma tarefa que não pode ser somente dela. Precisamos de uma sociedade inteira envolvida nesse trabalho de formação de leitor. Não quis chamar de plano de leitura, projeto de leitura. Eu queria um movimento de leitura, com pessoas que acreditam que a literatura é boa, faz bem, com quem possa ajudar, indicar um livro, fazer um grupo de leitura. Quem pode fazer isso pode entrar no nosso movimento, pode entrar no site (www.brasilliterario.org.br). Temos contatos que vão informando o que está acontecendo. É todo mundo que acredita nisso. Não há cobrança nem avaliação. Não quis nada disso, quis um movimento livre. O movimento é uma coisa organizada, tem uma organização interna, um fluxo. Todo mundo que estiver embalado nessa confiança na literatura, que a literatura pode fazer uma sociedade mais bonita, menos corrupta, mais reflexiva, mais crítica. Pode fazer uma sociedade mais cheia de compaixão, de respeito mútuo. Acho que a literatura tem a função de tornar a sensibilidade mais aguçada. As pessoas mais intuitivas, mais prontas para as minúcias, para os retalhos, como diz o Manoel de Barros, para os restos, para as pequenas coisas. A literatura pode nos ajudar muito.

• Nem luz própria
Hoje estamos vivendo em um Brasil feio. Não gosto do Brasil em que vivo hoje. Um Brasil que só fala de números. O Brasil vai bem porque a economia vai bem. Mas e nós, o povo? Nós estamos bem? Estamos seguros, respeitados? Estamos dignamente humanos? Temos uma escola boa, uma saúde boa? Temos uma segurança boa? O Brasil vai bem porque a economia vai bem. Mas e eu não conto? Sou apenas um número? Estudei na física que o planeta não tem nem luz própria. Olha que coisa terrível morar em um planeta que não tem nem luz própria. Estamos em uma periferia do cão. E para ter o dia e a noite você nem precisa de uma estrela de primeira grandeza. Uma estrela de quinta grandeza, como o Sol, serve. Resolve isso numa boa. E ainda temos alguma verdade para dizer? É só a dúvida que nos une, que nos aproxima. É só disso que precisamos. Precisamos de amparo com a nossa dúvida. E a literatura nos ampara. Tenho muito medo da verdade. Não acredito que haja nada verdadeiro. Tive um professor de filosofia, o padre Henrique Vaz, para quem eu perguntei “o que era a fé”. Ele me respondeu que a fé é a dúvida. Tem dias que você tem muita, tem dias que tem pouca, tem dias que não tem nenhuma. Isso se chama fé, porque nos é possível somente a dúvida. Hoje, estamos com muita gente encontrando a verdade. Quando uma pessoa encontra a verdade, a única coisa que ela adquire é a impossibilidade de escutar o outro. Ela só fala, não escuta mais. Quem encontra a verdade só fala.

• Verdade mais profunda
A memória é o nosso grande lugar. Na memória tem tanto o que vivi quanto o que sonhei ter vivido. Não acredito em memória pura. Toda memória é ficcional. É um pedaço da memória com mais um pedaço da fantasia. A fantasia é o que temos de mais real dentro de nós. A fantasia é a minha verdade mais profunda. A fantasia é aquilo que não conto para ninguém, só para as pessoas que amo muito. Ela é tão verdadeira que quando vou contar essa fantasia, faço uma metáfora para protegê-la. Pois a fantasia é o que tenho de mais profundo dentro de mim. É o meu real mais absoluto. Não existe uma memória pura, toda memória é ficcional. Precisamos tomar posse da fantasia. Todo real é uma fantasia que ganhou corpo. O que põe o novo no mundo é a fantasia. Uma escola nova é uma escola que cultiva a fantasia. Se ela ficar só na tradição, ela só fica na repetição. Ela não instala o novo. É a fantasia que inaugura o novo no mundo. Há cem anos, voar era uma fantasia do Santos Dumont. É preciso saber se quero uma sociedade nova. Preciso de uma escola fantasiosa e convidar a criança para deixar a fantasia vir à tona.

• Escrever para criança
Quando escrevi O peixe e o pássaro, a Enriqueta Lisboa disse que a natureza é muito sábia. Que a natureza tem o tempo de florir, o tempo de dar o fruto, o tempo da colheita. Tem o tempo das cheias, das vazantes. A natureza tem as quatro estações, é muito sábia. E a natureza é tão sábia que não sentiu nenhuma necessidade de fazer um sol para adultos e outro para crianças. A natureza, com essa sabedoria dela, nunca fez um rio para adulto e outro para criança. E que não era inteligente fazer uma literatura para adulto e outra para criança. Ou é literatura ou não é literatura. Isso me marcou muito. Quando escrevo, gosto de me perguntar se o texto escrito fica em pé sem nenhuma ilustração. Se precisar de ilustração ou uma muleta qualquer, não vale a pena. O texto tem que valer como texto sozinho. Quando se põe o carimbo “para crianças”, quando tem destinatário, a gratuidade da literatura se perde. A pergunta que coloco é: “por que a criança pequena gosta tanto de livro, vê de frente para trás, de cabeça para baixo, inventa história, folheia aquilo, leva para cama?”. E por que passa a não gostar de livro quando entra para a escola? É porque a escola vai cobrar. Muitas vezes, a literatura serve de elo. A criança vira para o adulto e pede para ele contar uma história. O adulto diz que não sabe e ela pede para ele contar a que contou na noite anterior. No dia seguinte, o pedido se repete. Ela não quer saber da história, ela está pedindo para você parar e ficar um tiquinho com ela. A literatura se torna um pretexto para o encontro do pai com o filho. Qualquer história serve. Ela está pedindo a sua presença. É preciso fazer da literatura esse local de encontro. É tão bonito quando você diz “venha cá que vou te contar uma história”. É porque você sabe essa história de cor. E saber de cor é saber de coração. A literatura pode ser um espaço bonito do reencontro, da conversa, do deslanchar para outras coisas, para outras confidências.

• Sociedade falante
Quando uma sociedade e seus valores ficam muito perdidos, ela ganha muita força para a auto-ajuda. É uma sociedade que procura o que fazer, como viver. Precisa muito de receita. O melhor diálogo que travamos na vida é com o silêncio. Conversar com o silêncio é fascinante. Vivemos em uma sociedade em que o silêncio está interditado. As pessoas falam o tempo inteiro. Você entra no aeroporto e a tevê está ligada o tempo inteiro. No hotel, a tevê está ligada o tempo inteiro. Tem uma música tocando no elevador, tem alguém falando no celular. Tem pessoas com três celulares. É um mundo que fala o tempo inteiro. Não conversamos com o silêncio. E quando escutamos o silêncio, temos muitas respostas. Estamos ficando cada dia mais interditados do silêncio. Tem um objeto que me preocupa muito chamado televisão. Não tenho nada contra. Às vezes, tem umas novelas boas que a gente descansa ao assistir. Mas entre um bloco e outro, existe uma coisa chamada comercial, que mostra tudo o que não temos. Você não tem esse cartão de crédito, não tem esse tênis, não fez essa viagem. Você não tem esse carro, não usa esse produto… Certa vez, umas senhoras apareceram na minha casa, muito bem vestidas, às três horas da tarde, me pedindo para participar de abaixo-assinado que elas iriam mandar para o Roberto Marinho. O abaixo-assinado era porque a Globo estava passando programas naquele horário que não eram bons para os jovens. Eu as levei até o escritório, não tenho tevê na sala, e disse para elas: “Olha, vou dizer para a senhora que a minha televisão é maravilhosa. Ela tem um botão que quando não quero assistir, eu desligo. Tem que instalar na da senhora. É uma coisa fascinante. Se a da senhora não tem, mandar instalar”. As pessoas estão sem autonomia até para desligar uma televisão. Compram aquilo, ligam de manhã e dormem com aquilo ligado a noite inteira. É uma coisa que fala no ouvido da gente o tempo inteiro.

• Livro digital
Um dia, conversando com a Anne-Marie Chartier (pesquisadora francesa em educação, casada com o historiador Roger Chartier), ela falou mais ou menos assim: “Vou à locadora porque não tive tempo de ver o filme. Aí, levo para casa o filme que quero ver. Aí, tenho que ter um aparelho para enfiar aquele filme, mas antes tenho que ver se ele está bem conectado na televisão. Depois, preciso ver se o controle remoto tem pilhas para poder ligar e assistir ao filme. Quando faço tudo isso e não consigo, preciso telefonar para o técnico que me diz que daqui a três dias vem para ver qual é o problema. E acho que estou maravilhosamente bem servida com a tecnologia. Não estou. O livro é uma coisa tão fascinante. Não tem pilha, não tem fio, não tem técnico, não tem nada”. Ela falou comigo, o livro ainda será inventado de tão maravilhoso que ele é. Ainda será inventado porque é a coisa mais prática que tenho. Essa tecnologia toda precisa de pilha de eletricidade. O livro não tem nada disso, põe debaixo do braço e leva para onde quiser. Não tem que anotar em que parte parou, basta dobrar o cantinho e já sabe. É bonito no livro quando você risca o que lê. Acho bonito quando pego livros que li e vejo onde risquei e penso “já não sei mais por que marquei isso”. Que coisa boa! Naquele dia, aquilo teve uma função. Hoje, já não sei mais qual é. Então, respondo com a fala da Anne-Marie Chartier: “O livro ainda vai ser inventado. É tão bom que ainda vai chegar o tempo dele”.

LEIA resenha de Vermelho amargo.

Paiol Literário

O projeto Paiol Literário, realizado pelo Rascunho desde 2006 em Curitiba, já contou com a participação de mais de 70 autores brasileiros. É um grande acervo sobre a literatura brasileira contemporânea. Os encontros são iniciados sempre com a pergunta: “Qual a importância da literatura na vida cotidiana das pessoas? E por que ler?”.

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