🔓 Se afogar como ficcionista

A obsessão quase doentia dos ficcionistas na busca pela verossimilhança, sempre às voltas com muitas perguntas e inquietações
Ilustração: FP Rodrigues
10/06/2022

Hoje o professor termina a yoga nos dizendo para imaginar o mar. É a hora do relaxamento final, e ele em geral nos coloca numa montanha, mas hoje apareceu essa praia. Conforme ele nos manda avançar em direção a água, e conforme ele descreve as ondas que vão batendo cada vez mais alto no nosso corpo, o meu cérebro narrativo estraga tudo e cria a pergunta nada relaxante: o que ele vai fazer quando a água cobrir a nossa cabeça?

É o mal de quem trabalha com ficção. Primeiro, a leitura deixa de ser um lazer descompromissado e se transforma numa atividade. Mesmo quando a gente quer apenas ler um livro bom, a cabeça fica ali pensando sobre a estrutura, sobre o propósito das cenas, sobre o conflito e será mesmo que a autora pesquisou as crateras de Saturno ou só inventou? Depois esse hábito se espalha vida afora.

É um pouco o que acontece no primeiro capítulo do livro Esboço, da Rachel Cusk. Uma conversa de avião se transforma num exercício de desconfiança. A narradora escuta o senhor do assento ao lado falar do segundo casamento, e passa a caçar as incongruências, as acusações exageradas à ex-esposa, as elipses que ocultam as próprias falhas, as desconfianças narradas como certezas. Ela o interpela com suas objeções, e o senhor concede: é, talvez eu não seja muito imparcial nessa história.

Ninguém nunca é imparcial na própria história, isso é evidente. Mas nós, as escritoras e os escritores de ficção, temos essa obsessão quase doentia. Estamos na mesa do bar conversando com uma amiga. Ela conta uma coisa qualquer, pode ser algo banal, pode ser apenas meu chefe é um idiota, e a gente começa: mas ele é um idiota mesmo?, será que ele não estava num momento ruim?, será que ele não foi um dia um bom funcionário elevado à posição de chefe contra a sua vontade? É um excelente método para perder amigos e encerrar conversas.

O resultado é que a gente acaba fazendo amigos que ou compartilham da nossa obsessão, ou percebem nessa mania narrativa uma vantagem. Há quem considere positivo tentar enxergar o outro lado das situações. Uma amiga minha costuma dizer que eu faço excelentes perguntas. Ela acha que é uma coisa psicanalítica, mas é só literatura.

Por isso meu passeio na praia imaginária da yoga ficou tenso. Ele nos dizia para dar mais e mais passinhos à frente. As ondas já estavam cobrindo nossos ombros. Ele vai nos afogar?, eu me perguntava, o relaxamento já completamente esquecido.

Mas o professor nos salva: flutuem, ele ordena, e eu penso que é claro que tudo isso já estava previsto, eu não precisava ter me preocupado com nosso avanço contra as ondas.

Até que ele começa a bater os sininhos de fim da aula. Um sininho, dois sininhos, e só lá no terceiro ele manda retornarmos à areia, mas não dá tempo, estávamos flutuando lá no fundo, a aula já vai acabar e ele nem nos disse para nadar de volta à margem. Inverossímil, tem que rever os tempos da narrativa, foi uma quebra muito súbita. E assim acabou a aula de yoga. Enquanto todos estavam de volta à segurança da areia, eu continuava sem dar pé na maré da ficção.

Julia Dantas

Nasceu em Porto Alegre (RS). É editora, tradutora e doutoranda em Escrita Criativa pela PUCRS. É autora de Ruína y leveza (Não Editora, 2015) e organizadora de Fake Fiction: contos sobre um Brasil onde tudo pode ser verdade (Dublinense, 2020).

Rascunho