🔓 Sambas que se apagam

Há uma praxe segundo a qual não se gravam sambas derrotados nas quadras, mas gosto de pensar que há um lugar no qual esses sambas mortos estão guardados
02/12/2020

(02/12/20)

Ainda sem saber se vai mesmo haver desfile em 2021, as escolas do Rio já se movimentam para escolher seus sambas-enredos. O sistema de seleção, em geral, é simples: após um período de inscrições, acontecem fases eliminatórias nas quais as parcerias apresentam seu trabalho para um júri previamente constituído. O processo afunila para a semifinal e, então, para a finalíssima, quando conhecemos a obra que conduzirá a passagem pela avenida.

Essa disputa, que no papel parece tão ponderada, quando levada à esfera prática muitas vezes redunda em confusão. Seja porque a comunidade da própria escola está dividida com relação àquele que deveria ser o samba vencedor, seja porque a arte de perder não é meramente decorativa, e os compositores derrotados canalizam para a maledicência o talento já demonstrado com as palavras.

Safras de grande qualidade costumam tornar ainda mais difícil o trabalho dos jurados. Foi o que aconteceu no Império da Tijuca em 2014, com a evocação do batuque que dá vida ao samba; na Acadêmicos da Grande Rio em 2019, com a reverência a Exu; e se repetiu este ano no Império Serrano, na homenagem ao capoeirista baiano Manoel Henrique Pereira, o Besouro Mangangá. São enredos que, por sua riqueza histórica e simbólica, acabam por render obras de altíssimo padrão. Tanto do ponto de vista melódico, quanto sob a perspectiva poética.

O samba-enredo vencedor será registrado em disco, constará dos aplicativos de streaming e provavelmente ficará na lembrança. Os versos das composições descartadas, contudo, estão condenados ao esquecimento. Por melhores que sejam. Há uma praxe segundo a qual não se gravam sambas derrotados nas quadras. As exceções são raras e confirmam a regra. Uma delas, decerto a mais famosa, se deu no próprio Império Serrano, em 1975.

Para o desfile sobre a vedete Zaquia Jorge, a escola elegera a obra de Avarese, que traz os versos “Baleiro-bala/ Grita o menino assim/ De Central a Madureira/ É pregão até o fim”. O samba teve bom desempenho na Avenida e foi cantado pela cidade. Mas o maior sucesso coube a outro, cujo destino aparentemente seria o aniquilamento.

Naquele mesmo ano, o cantor Roberto Ribeiro gravou no disco Molejo a parceria de Acyr Pimentel e Ubirajara Cardoso. Rebatizada de Estrela de Madureira, a composição que chegara em segundo lugar no concurso do Império acabou estourando nas paradas. Para além disso, transcendeu o universo do carnaval. Hoje, mais de 40 anos depois, continua a integrar o repertório das melhores rodas de samba ao longo do país. “E um trem de luxo parte/ a exaltar a sua arte/ que encantou Madureira”, as pessoas cantam em coro, não raro ignorando que se trata de um samba, originalmente, de enredo.

Estrela de Madureira sobreviveu porque Roberto Ribeiro descumpriu a regra não escrita de não gravar sambas-enredos que sucumbiram ao mata-mata da disputa. Outros tantos, em tantas escolas, apagaram-se. Uma biografia de poucos meses, entre a gênese e a recusa do corpo de jurados.

Gosto de pensar que há um lugar no qual esses sambas mortos estão guardados. Um depósito onde versos e melodias que não vingaram enfim se realizam em toda a potência. E que excede a música. Lá está o gol de Pelé, na Copa de 70, após o drible da vaca no uruguaio Mazurkiewicz. O título de Joãozinho Trinta com seus mendigos. A palavra que faltou, o beijo que certo dia hesitamos em dar. É um castelo assombrado pelo quase. Mas feliz.

Marcelo Moutinho

É autor dos livros  A lua na caixa d’água (Prêmio Jabuti 2022), A palavra ausente (2022), Rua de dentro (2020), Ferrugem (Prêmio da Biblioteca Nacional 2017), Na dobra do dia (2015), e dos infantis Mila, a gata preta (2022) e A menina que perdeu as cores (2013), entre outros.

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