🔓 Reitismo: primeira aula

Pra começar, um resuminho em três passos: você escolhe o alvo, faz a sua crítica e pede pros amigos espalharem
Ilustração: Eduardo Mussi
15/05/2022

“Bom dia, pessoal, bons dias, bons dias. Todos aqui pagaram a taxinha? Então vamos começar o nosso curso de ‘Reitismo Aplicado’. Estou vendo que já conheço alguns. Você fez meu curso de ‘Cancelamento Imediático’, não fez? E você estava no de ‘Linchamento Virtual’, não é? Ah, aquele foi muito divertido. Mas vamos em frente que atrás vem gente. Acho importante começar dizendo que este é um curso ecumênico. Serve pra todas as religiões, gêneros e posições políticas. Vamos começar pela definição do nosso objeto. O que é o Reitismo? Eu pergunto e eu respondo: o Reitismo é a arte do nosso tempo! A palavra, como vocês devem saber, vem do inglês ‘hate’, ‘to hate’, que significa odiar. E todo mundo ama odiar, não é mesmo? Ah, se é! O Reitismo é, assim como foram o Simbolismo e o Modernismo, uma nova corrente literária. Aliás, não só literária. É uma manifestação literário-internética. Porque, agora, o tuíte é poesia, a legenda no Instagram é conto e o textão do Face é romance.

“Bem, como o nome já diz, o Reitismo é a arte de odiar. Odiar o quê? O que você quiser. Uma pessoa, um livro, uma ideia, uma frase, tanto faz. O importante é ‘reitiar’ alguma coisa. Assim você ganha aplausos, laiques, fãs e até dinheiro. Mas não vale dar curso que nem o meu, hein? Kkk!

“A primeira coisa a fazer é achar o objeto a reitiar. É sempre bom você ser o primeiro a reitiar alguma coisa. Ganha ponto extra. Sobe no conceito do pessoal. Vamos pegar, por exemplo, um livro (livro é sempre bom, porque você pode falar o que quiser dele, que ninguém vai ler pra conferir). Vamos dizer que no livro tem a cena de um condenado à morte que come sua última refeição. O que pode ser essa última refeição? Palpites, quero palpites. Essa é uma aula interativa, vamos lá. Uma moqueca? Bom. Uma picanha? Picanha é ótimo, que está pela hora da morte, kkk! Oi, o quê? Isso, grande ideia! Vamos de lagosta, que é mais chique.

“Então, se você é de um grupo a favor da pena de morte, pra reitiar esse livro é só dizer que ele prega a mordomia para os condenados. Você pode falar assim: ‘Onde já se viu gastar dinheiro público com a gula de um criminoso!? Essa lagosta deveria ser servida para nossas crianças, etc, etc…’. Aposto que vai pegar superbem. Em cinco minutos já vão estar dizendo que a última refeição de um condenado à morte tem que ser o pão que o Diabo amassou, kkk!

“Mas vamos dizer que você está num grupo contra a cadeira elétrica. Nesse caso, você pode falar que ‘o livro glamouriza a pena de morte, porque mostra o condenado se lambuzando ao comer uma lagosta, etc, etc…’. Aposto que na hora vão começar os comentários do tipo ‘o autor está tentando diminuir a desumanidade da pena capital’.

“Viram? O Reitismo serve pra qualquer lado. É só escolher uma cena, uma frase, uma palavra e mandar brasa. E não vamos cair naquele papinho de ‘entender o objeto segundo o pensamento da época’ ou ‘tentar compreender o trecho dentro do contexto’. Isso dá muito trabalho. Se eu só li uma frase, vou julgar essa frase. E se o cara está sendo lido, visto ou ouvido hoje, tem que ser julgado pelos gostos e leis de hoje. Ponto final! Aliás, é sempre bom usar essa expressão: ‘ponto final!’. Dá a ideia de que não tem discussão sobre o assunto.

“Mas dar a sua opinião é só o começo. O Reitismo não é apenas uma arte literária. É também uma arte social. Você precisa espalhar a sua opinião por aí. E como você faz isso? Com amigos! Liga pra eles, manda o seu textinho e pede que falem do que você falou. Você vai ganhar muitos pontos como descobridora do problema e seus amigos vão receber dividendos por espalhar a notícia. Eles viram sócios do seu lucro social.

“O quê? Não, claro que não. É óbvio que seus amigos não precisam ler o livro para espalhar sua opinião. Pelamordedeus, quem aguenta ler um livro inteiro hoje em dia?! Se a gente for ler o artigo completo, ver a série inteira ou escutar o CD até o fim (ainda existe CD?), não sobra tempo pra nada. E tempo é laique! Ainda mais que a modernidade é laiqueda, kkk!

“Por que ninguém riu? Não pegaram o trocadilho com a ‘modernidade líquida’ do Bauman. Não? Ninguém leu o Bauman? Nem eu. Citar o que não se leu é uma arte, kkk!

“Uma coisa importante é não esquecer que, em última instância, a sua crítica não é contra o tal livro ou tal música. A sua crítica é a seu favor. Quem xinga o outro mostra-se superior a ele, entenderam? Moralmente, esteticamente, artisticamente, etceteramente. Em toda escalada a gente tem que pisar em alguma coisa, é ou não é?

“Agora, alguém pode se perguntar: ‘será que eu vou perder oportunidades por conta do Reitismo, será que os amigos do reitiado não vão me chamar para dar entrevistas, para participar de comissões, etc…?’ E a resposta é: ‘de jeito nenhum!’. Pelo contrário. Os amigos do reitiado vão ficar com medo de você e sua turma reitiarem eles, e assim te chamar pra dar entrevistas, depoimentos, etc…

“Enfim, deu pra entender a ideia da engrenagem do Reitismo? É simples, vou fazer um resuminho em três passos: você escolhe o alvo, faz a sua crítica e pede pros amigos espalharem. Simplinho, simplinho.

“Todo mundo aqui já ouviu falar no Gabinete do Ódio, não ouviu? Então, é mais ou menos a mesma coisa. Só que com mais capricho. Tá ok?”

José Roberto Torero

Escritor e roteirista, Torero nasceu em Santos (SP), em 1963. É autor de O chalaça (prêmio Jabuti na categoria romance em 1995) e Os vermes, entre outros. Também é autor de livros de não ficção e de literatura infantojuvenil. Ao lado de Paulo Halm, assinou o roteiro do longa-metragem Pequeno dicionário amoroso.

Rascunho