🔓 Próteses de guerra

Enquanto tenta escrever um conto, surgem próteses penianas, um pássaro no pátio, uma estranha vibração no ouvido esquerdo
Ilustração: FP Rodrigues
15/04/2022

Tento escrever um conto, mas não me sai da cabeça que o exército brasileiro está gastando milhares de reais para comprar próteses penianas. Esse fato sozinho é melhor que o meu conto.

Tento escrever um conto, mas há um pássaro que há três dias visita o pequeno pátio que observo da minha janela. Olhar para o pássaro é melhor do que escrever o conto.

Tento escrever um conto, mas ontem li Lygia Fagundes Telles e parece desnecessário escrever mais contos.

Tento escrever um conto, mas sinto uma leve vibração no ouvido esquerdo que me desconcentra. É como um bater de asas e, em vez de escrever o conto, investigo as posições em que elas sossegam.

Tento escrever um conto sobre uma mulher má, mas acordei bem-humorada e só me ocorrem ideias com pessoas boas.

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Os pênis e as guerras andam próximos. Na Ucrânia, soldados estupram mulheres e crianças porque o estupro é uma arma desde antes de existirem as guerras. Daí se conclui que os generais, se é para tê-los, melhor mesmo tê-los broxas. Melhor tê-los encomendando próteses de silicone do que fabricando conflitos.

O pássaro é tão grande que não ouso chamá-lo de passarinho. Marrom de peito amarelo, eu me sinto a mais urbana das criaturas por desconfiar que é um sabiá, mas não ter certeza. Ele cata invisibilidades do chão e olha para os lados como quem procura alguma coisa. Pego o celular e anoto na lista do mercado: comprar coisas que pássaros comam.

Analisamos Os objetos da Lygia e enumeramos teorias sobre aonde vai aquele homem com a adaga. Matará o porteiro, a si mesmo, a desconhecidos na rua? Eu fico me perguntando por que havia um anão na loja de antiguidades.

Pesquiso no Google o que é vibração no ouvido, e é evidente que não devia fazê-lo, mas é evidente que o faço. O Google, porém, só sabe de zumbidos no ouvido, o que não é o caso, de modo que não poderei passar o resto do dia pensando que tenho um câncer ou uma síndrome rara ou uma alucinação sonora.

Eu quero escrever um livro inteiro sobre mulheres más. Mulheres que envenenam maridos, que abandonam filhos, que traem, trapaceiam e roubam. Mulheres que quebrariam coisas, começariam incêndios, matariam os generais. Mas sou apenas uma mulher que lê e alimenta pássaros. Com treino, talvez, e se forem corvos, pode ser que os pássaros cheguem a arrancar os olhos das pessoas que eu imagino.

Julia Dantas

Nasceu em Porto Alegre (RS). É editora, tradutora e doutoranda em Escrita Criativa pela PUCRS. É autora de Ruína y leveza (Não Editora, 2015) e organizadora de Fake Fiction: contos sobre um Brasil onde tudo pode ser verdade (Dublinense, 2020).

Rascunho