O mineiro Ronaldo Cagiano tem mais de trĂŞs dĂ©cadas de vida e produção literária. Nascido em Cataguases, de onde saĂram escritores conhecidos nacionalmente, ele atualmente vive em Portugal com a esposa.
Cagiano começou na literatura muito cedo e durante muito tempo foi colaborador de importantes veĂculos, como Jornal do Brasil, O Estado de SĂŁo Paulo, Folha de S. Paulo, Estado de Minas, Correio Brasiliense e Revista Cult.
Sempre atento Ă produção literária nacional, organizou algumas antologias, incluindo Antologia do conto brasiliense, Poetas mineiros em BrasĂlia e Todas as gerações — O conto brasiliense contemporâneo.
Sua produção trafega entre a prosa de ficção, a poesia e a crĂtica literária, sendo um dos escritores mais profĂcuos de seu tempo, embora nĂŁo exatamente um dos mais conhecidos.
É autor de Dicionário de pequenas solidões, O observatório do caos, Os rios de mim e do mais recente Cartografia do abismo, uma coletânea de poemas que giram em torno de temas que, particularmente, são a grande tônica de seu trabalho: a infância, a memória, os afetos, a natureza, a solidão e a própria literatura.
Nesta entrevista para o Rascunho, Cagiano fala sobre o processo criativo de seu livro mais recente, a rotina da profissão, o interesse pelos diferentes gêneros textuais, a vida no exterior, os problemas do meio literário e o pouco interesse que tem pelas redes sociais.
• Como se deu o processo de elaboração de seu mais recente trabalho?
Meu mais recente livro, Cartografia do abismo, consiste no meu retorno Ă poesia, gĂŞnero com que inicio minha trajetĂłria literária, na dĂ©cada de 1980. É uma safra de poemas escritos nos Ăşltimos trĂŞs anos e meio, perĂodo em que estamos morando em Portugal. Cerca de 90% dos textos germinaram aqui, mas acabei por incluir no livro algum trabalho que já havia saĂdo anteriormente em jornais e revistas, bem como em suportes eletrĂ´nicos. Representam um novo olhar e refletem uma nova experiĂŞncia existencial, fruto de outra vivĂŞncia territorial e psicolĂłgica, incorporando minha relação com as demandas, tensões e apreensões desses agitados anos do Brasil e do mundo, quando experimentamos um rápido escalonamento de valores em todos os campos. Sinto, como Murilo Mendes, poeta brasileiro (de Juiz de Fora), que viveu e está enterrado em Lisboa, que “vou onde a poesia me chama”.
• Noto que boa parte de seus trabalhos poéticos traz temas recorrentes ligados à infância, à natureza e ao próprio fazer literário. Como a poesia chega para o senhor e o que ela representa enquanto forma?
A infância Ă©, no meu entender, o gatilho do homem, o inconsciente individual (e tambĂ©m coletivo) que alberga nossas referĂŞncias; tudo vem dessa fase embrionária, mas fundadora, da vida, do caráter, da identidade. Nossa mitologia pessoal está toda lá, isso me lembra o que disse Drummond no belo poema Interpretação de dezembro: “É o menino em nĂłs/ ou fora de nĂłs/ recolhendo o mito”. Nos meus contos e poemas Ă© a infância — esse rio recorrente do passado que nunca sossega e sempre nos banha a memĂłria — que povoa a minha escritura. E ela carrega os nossos primeiros insights, nossos olhares ainda precoces e onĂricos sobre o mundo, as pessoas, a realidade, os conflitos Ăntimos do ser. Para ressaltar essa presença da infância no que escrevo, recordo outro belo poema do poeta angolano (residente em Portugal) Zetho Cunha Gonçalves, que dialoga com esse sentimento que perpassa meu trabalho: “E nenhum rio Ă© como esse,/ o rosto magnificente da infância,/ a pátria imaginada da poesia”. Ou encontrando-me ainda no que disse Maria Velho da Costa, uma das mais importantes escritoras portuguesas, recentemente falecida, cuja personagem em seu livro Myra endossa o que tambĂ©m penso: “A infância Ă© um paĂs mágico, donde somos todos expatriados pela percepção da morte, ou da crueldade”. A poesia foi e continua sendo, para mim, o sopro inicial, a forma estĂ©tica pela qual tenho me identificado e dela me apropriado para comunicar meus mundos (o criativo, o crĂtico, o reflexivo), tanto Ă© que na prosa tento nĂŁo desviar-me de uma inflexĂŁo poĂ©tica, pois compreendo a linguagem como tributária de uma formatação poĂ©tica, nĂŁo basta contar uma histĂłria apenas, Ă© preciso saber contá-la e para isso, a poesia vem em nosso socorro para o amálgama da narrativa. Sobre isso já dizia Baudelaire: “Ser poeta, mesmo em prosa”. Acho que incorporei essa ideia, que pode nĂŁo ser uma verdade absoluta, mas me soa norteadora.
• Costuma seguir uma rotina diária durante a escrita de um livro?
Tenho uma rotina flexĂvel, sem estabelecimento de rigor temporal ou qualquer imposição disciplinar. Meu processo de criação nĂŁo segue um modelo ou padrĂŁo especĂfico, nenhum esquema de ordem formal, conceitual ou temático, no entanto, Ă© em meio ao caos e Ă fragilidade da vida diária que os poemas e histĂłrias vĂŁo surgindo. O entorno Ă© meu campo de observação e estruturação literária. Mais uma vez, Drummond me socorre: “O tempo Ă© minha matĂ©ria/ o tempo presente/ o homem presente/ a vida presente”. NĂŁo há como fugir disso. Nosso trabalho Ă© escrevivĂŞncia. Tudo pode ser matĂ©ria e circunstância para entrar num conto ou num poema, desde a banalidade de um acontecimento corriqueiro, o absurdo, o insĂłlito, atĂ© a imagem ou memĂłria de algo ancestral, que hiberna lá nos primĂłrdios de nossas lembranças ou experiĂŞncias pessoais ou Ăntimas. Uma conversa de rua, por exemplo, uma imagem, um flagrante, um cheiro, uma notĂcia de jornal, podem surgir como insight para a construção literária. E atĂ© mesmo uma leitura de algum autor, de um texto, de uma leitura de jornal que inflamam um novo poema ou histĂłria. Como afirmei, nĂŁo há uma metodologia ou rigidez para minha atividade criativa, nada Ă© compulsĂłrio. Aliás, muitas vezes priorizo a leitura e releitura antes de iniciar um trabalho novo. E isso pode durar muito tempo. Ao escrever, posso iniciar diretamente no computador ou esboçar anotações nalgum bloco, caderno, folha solta, caso esteja na rua e a ideia me ocorra. NĂŁo há nem roteiro nem rotina prĂ©-estabelecidos para a minha escritura. Já ocorreu de levantar no meio da noite, interrompendo o sono por uma ideia e anotar para depois retomá-la. Ou andando pela rua, viajando de Ă´nibus, metrĂ´, trem ou aviĂŁo e, igualmente, o fato ou a ideia saltarem Ă minha frente. E aĂ, de alguma forma, registro esse sentimento para depois trabalhá-lo com mais vigor forma e conteĂşdo.
• O senhor já organizou algumas antologias muito importantes para a literatura brasileira nas Ăşltimas dĂ©cadas, o que inclui, por exemplo, Antologia do conto brasiliense, Poetas mineiros em BrasĂlia e Todas as gerações — o conto brasiliense contemporâneo. Como foi organizar esses livros e selecionar os textos que entrariam nesse trabalho de cartografia literária local?
Morei 28 anos em BrasĂlia e esse perĂodo foi fundamental para perceber a variedade e versatilidade da literatura brasiliense em todos os nĂveis. A convivĂŞncia com escritores de várias gerações instigou-me a realizar esse mapeamento, cuja intenção era nĂŁo apenas cartografar, mas deixar um registro, para o presente e para futuras gerações, sobre a literatura feita em BrasĂlia desde a sua fundação, mas tambĂ©m para documentar as diversas tendĂŞncias e expressões estĂ©ticas de uma cidade que Ă© a sĂntese da diversidade, da pluralidade e da heterogeneidade do paĂs. Na primeira coletânea, Antologia do conto brasiliense, incluĂ textos de autores pioneiros (vivos e mortos), que lá vivem e produzem, bem como os que viveram e escreveram durante sua estada na cidade. Essa recolha dizia de uma geração que escrevia em BrasĂlia, mas nĂŁo sobre BrasĂlia, mas a partir dela, com fundas raĂzes em seus territĂłrios de origem. SĂŁo autores nĂŁo nascidos na capital, portanto essa obra reflete a multiplicidade de dicções, representa um caleidoscĂłpio narrativo do Brasil, mas tambĂ©m marcados pela transitoriedade, já que muitos lá passaram poucos anos e retornaram aos seus estados. Na segunda, Todas as gerações — o conto brasiliense contemporâneo, ainda que repetisse vários dos nomes anteriores, dei preferĂŞncia Ă inclusĂŁo de uma outra geração, na maioria autores nascidos na capital da RepĂşblica e muitos deles ainda estreantes, mas com uma literatura que trazia, nas histĂłrias e na linguagem, a identidade com a cidade, na apreensĂŁo de seus cenários e idiossincrasias, aspectos atĂ© entĂŁo ausentes nos autores da geração anterior. Isso possibilitou contemporizar duas realidades: a escrita das origens, centrada noutros ambientes geográficos, humanos e psicolĂłgicos dos que migraram para BrasĂlia durante e apĂłs a construção, e aqueles que sĂŁo filhos da terra e criaram uma outra linguagem, captaram outras tensões, obras contemporâneas do espĂrito vanguardista, renovador e modernista da cidade que nasceu da pranchetas de Niemeyer e LĂşcio Costa, fruto do sonho de JK. Quanto Ă poesia, quis reunir num outro volume o grande nĂşmero de vozes femininas e masculinas da poesia mineira, considerando essa colĂ´nia maciça que prepondera em BrasĂlia junto com a dos migrantes nordestinos e que igualmente a estes, destaca-se pela qualidade de sua imensa bibliografia.
• O senhor mora em Portugal há alguns anos e parece viver uma vida literária bastante produtiva. Para alĂ©m da escrita, está sempre participando de eventos e comissões julgadoras de concursos literários locais e internacionais. Pode falar um pouco sobre a sua relação com o paĂs? Quais sĂŁo as maiores benefĂcios de morar em Portugal?
Era um sonho antigo viver fora, entĂŁo, aproveitei que havia me aposentado em 2016, apĂłs 35 anos de trabalho como bancário e atravessamos o Atlântico para essa nova experiĂŞncia existencial, geográfica, cultural e histĂłrica no velho continente, onde tenho tambĂ©m minhas raĂzes portuguesas (paterna) e italianas (materna). Mas tambĂ©m, e principalmente, para escapar Ă violĂŞncia e ao espectro de conservadorismo, babaquice, preconceito, instabilidade polĂtico-institucional que vive o nosso paĂs apĂłs o golpe criminoso do impeachment contra Dilma e a instauração do fascismo da era Bolsonaro-Moro-Guedes, que tornou o paĂs inĂłspito e irrespirável. EntĂŁo, nĂŁo havia outra saĂda senĂŁo buscar uma outra vida, em territĂłrio onde a tranquilidade social e a normalidade democrática estĂŁo plenamente asseguradas. Portugal apresentou-se como alternativa mais viável, tanto pela qualidade de vida e pelo baixo custo, como pelo conforto da lĂngua, a proximidade afetiva e histĂłrica que nos unem e por viver num paĂs onde tudo funciona, os serviços pĂşblicos sĂŁo de boa qualidade, sem a paranoia da insegurança e a certeza de que nĂŁo seremos colhidos por uma bala perdida, pois nos grandes centros brasileiros e tambĂ©m já visĂvel no interior, esse espectro Ă© resultado do grande abismo entre classes e a injustiça social que Ă© nosso maior passivo, gerador da misĂ©ria que culmina no tráfico e no crime, agudizado pela ausĂŞncia do Estado no atendimento Ă s necessidades básicas da população. Essa paz social e de espĂrito e a adoção de uma vida mais simples e o contato com a natureza (moramos a 15 km do centro de Lisboa, perto da praia, onde realizamos nossas caminhadas diárias) tĂŞm contribuĂdo tambĂ©m para uma maior e melhor introspeção, sobretudo no que diz respeito Ă criação literária, o olhar prospectando outras realidades e atmosferas que acabam por incidir e influenciar na linguagem, eis que o contato tambĂ©m com experiĂŞncias criativas e expressões estĂ©ticas do variado mundo da lusofonia europeia e africana sĂŁo fundamentais para o aprimoramento de nosso processo de elaboração literária.
“No Brasil, ter vida literária, e não literatura, é o que muitas vezes conta.”
• Moendas de silĂŞncios e Diolinas sĂŁo duas novelas escritas a quatro mĂŁos. A primeira, pelo senhor e por Whisner Fraga; e a mais recente, ao lado de sua esposa, Eltânia AndrĂ©. Como foi a experiĂŞncia de escrever um livro em parceria com o amigo e outro com a esposa? É difĂcil trabalhar um texto literário de forma coletiva?
A escrita compartilhada Ă© uma experiĂŞncia instigante e desafiadora. É o encontro de possibilidades narrativas e criativas distintas, mas cujas peculiaridades se entrelaçam e se confundem no resultado final. Na verdade, minha primeira aventura na criação em coautoria foi com a novela juvenil Espelho, espelho meu, que escrevi em parceria com escritor alagoano-brasiliense Joilson Portocalvo. Uma histĂłria que nasceu depois que ele realizou uma oficina literária no PresĂdio da Papuda e lançamos o desafio de como seria escrever juntos e com olhares idiossincráticos uma mesma histĂłria. Foi entĂŁo que surgiu esse livro, que aborda uma personagem enfrentando seus dilemas e conflitos em famĂlia, os desencontros amorosos e as tensões prĂłprias da adolescĂŞncia, tendo a obra sido ilustrada por vários detentos. Depois, a convite do amigo Whisner Fraga, surgiu Moenda de silĂŞncios, uma novela adulta que aborda a vida de dois personagens oriundos do interior de Minas e que se conhecem e se tornam amigos num pensionado paulista e debatem-se com as contradições, os valores, o choque cultural e exigĂŞncias da vida numa grande metrĂłpole, divididos entre uma educação e costumes arraigados de suas origens e os desafios e contrastes da vida agitada, no mundo premido pelas disputas e luta pela sobrevivĂŞncia. Já Diolindas foi meu terceiro livro escrito a quatro mĂŁos, sendo igualmente um desafio muito estimulante, escrito em parceria com minha esposa, em que dou continuidade, já sob outro influxo, ao processo de escrita em que o apelo das nossas raĂzes comuns, sejam domĂ©sticas, sociais ou histĂłricas, conduziram o fio narrativo, pois o universo guarda verossimilhança com o nosso mundo anterior em Cataguases, onde nascemos e convivemos com os mesmos cenários e descobertas. NĂŁo se trata de uma novela autobiográfica, mas flagra com nosso tempo interior e nossa geografia anterior, em que muitos elementos foram recolhidos como mote para a construção de alguns personagens. Em todos os casos o processo vai se construindo a partir de uma primeira chama, o enredo se entrecruza no compartilhamento de ideias, visões e estilos que se mesclam, no desenrolar de uma histĂłria ou de uma trama.
• Por que nunca uma novela ou romance sozinho?
Um livro solo em novela ou romance é o que está por vir. Creio que uma narrativa mais longa exige maior processo de concentração e depuração, o que venho fazendo num novo trabalho, mas sem prazo fatal para conclusão.
• Como tem sido a rotina em Portugal durante a pandemia? Tem conseguido ler e escrever com qualidade?
Nesses tristes tempos, viveu-se em estrita obediĂŞncia ao estado de emergĂŞncia e Ă quarentena decretados pelas autoridades, com a restrição de circulação nas ruas e fechamento das atividades nas áreas econĂ´mica, financeira, escolar e cultural. Por isso, o isolamento compulsĂłrio foi necessário e os contatos virtuais tomaram a cena em nossas vidas. Para interditar o tĂ©dio do confinamento, a releitura, a mĂşsica, os filmes, a concentração na escrita pessoal predominaram nesse cenário de terra arrasada. Isso nos foi possĂvel graças aos suportes eletrĂ´nicos, que nos permitiram baixar obras, pelĂculas, shows, que nos ajudaram nessa travessia.
“Considero-me essencialmente poeta, no entanto a narrativa é instância que tem me proporcionado o mesmo prazer estético, seja como leitor ou criador.”
• O senhor possui uma produção mais profĂcua na narrativa breve e na poesia. SĂŁo os dois gĂŞneros que, de fato, lhe dĂŁo mais prazer? Considera-se efetivamente um contista e poeta?
Considero-me essencialmente poeta, no entanto a narrativa Ă© instância que tem me proporcionado o mesmo prazer estĂ©tico, seja como leitor ou criador. O trânsito pelos gĂŞneros, incluindo a crĂ´nica, bem como alguma resenha na imprensa escrita e eletrĂ´nica, tem me ajudado a compartilhar minhas ideias, apreensões, inquietações metafĂsicas, exorcizando fantasmas, vencendo a poeira do tempo, despistando a morte. Tomando emprestado de Fernando Pessoa, posso dizer tambĂ©m que, para alĂ©m da responsabilidade estĂ©tica e do compromisso Ă©tico que a literatura reclama de nĂłs, “escrever nĂŁo Ă© uma ambição minha, Ă© minha maneira de estar sozinho”. Mas, acima de tudo, permita-me repetir Octavio Paz, embora eu nĂŁo acredite em privilĂ©gios: “Escrever Ă© uma bĂŞnção”. E no fundo, como disse Autran Dourado numa entrevista ao jornal mineiro Hoje em Dia, tambĂ©m “escrever Ă© hábito para se entender a loucura humana”.
• O senhor mantém contato com outros escritores brasileiros?
Nunca pertenci a grupos, patotas, guetos, igrejas, panelinhas e confrarias, seja no campo das relações literárias ou de instituições, no entanto mantenho convĂvios com alguns poucos escritores, amizades que antecedem Ă s suas atividades ou movimentações literárias. No Brasil, salvo raras e honrosas exceções, a cena literária se articula nos bastidores, pelos relacionamentos, pelos compadrios, pelo sistema de vasos comunicantes e influĂŞncias, pelo toma-lá-dá-cá, pelas pressões de grupo. Ter vida literária, e nĂŁo literatura, Ă© o que muitas vezes conta. É isso que tambĂ©m pauta os grandes jornais, a crĂtica e o mercado editorial, e que determina o reconhecimento, o termĂ´metro (ou bafĂ´metro) que afere a oportunidade e conveniĂŞncia do convite aos escritores para as feiras literárias, hoje transformadas em passarelas fashions de um sistema editorial viciado e vicioso regido pelos fetiches do deus mercado, com seus cacoetes e modismos, com seus autores de proveta, muitas vezes incensando a escrita digestiva e de fácil comĂ©rcio, erguendo altares Ă mediocridade, reflexo desse envolvimento cartorial dos dois lados, em detrimento dos verdadeiros e bons autores que vivem Ă margem desses arranjos.
• Nesses 30 anos de carreira literária, como o senhor enxerga a produção literária de lá pra cá e o próprio mercado editorial brasileiro, com o advento das pequenas editoras, que a cada dia vêm ganhando mais espaço e atenção por parte dos leitores? O que mudou no espaço literário?
A produção literária, seja na prosa, na poesia, no ensaio, na crĂtica ou no jornalismo tem sido prolĂfica e profĂcua. NĂŁo há dĂşvida de que as alternativas acessĂveis Ă publicação sĂŁo maiores que no passado, sobretudo via internet, com um sem-nĂşmero de espaços a oferecer o trigo e o joio, numa perfeita democratização dos meios de produção cultural. É bom que se diga que nesse espectro em que a concentração ditatorial das grandes editoras exerce papel preponderante no que vai ser publicado, divulgado, resenhado e traduzido, o surgimento das pequenas editoras tem sido uma porta aberta para excelentes autores. Muitos autores (iniciantes ou veteranos no ostracismo) amargariam completo anonimato, sobretudo no interior do Brasil, caso nĂŁo pudessem contar com esses abnegados e quixotescos editores da Patuá, ReformatĂłrio, Penalux, LetraSelvagem, Urutau, Moinhos, Caos & Letras, Laranja Original, Arribaçã, Gueto, Primata, Macondo, Corsário SatĂŁ, QuelĂ´nio, DemĂ´nio Negro, MalĂŞ e tantas outras. Vivemos um perĂodo profĂcuo, fĂ©rtil de autores e obras, um verdadeiro “boom” na prosa e na poesia, e nĂŁo fossem essas novas casas editoriais a enfrentar esse gargalo, tirando leite de pedra, matando um leĂŁo por dia, a acreditar na literatura, nĂŁo haveria como dar vez e voz a tanta gente talentosa que vem fazendo a diferença em meio ao cipoal e Ă s contradições de um cenário tĂŁo competitivo e exigente, pois Ă© das pequenas editoras que vários concursos literários vĂŞm revelando carreiras promissoras.