🔓 Poemas de Charles Baudelaire

No bicentenário do poeta francês, a 7Letras lança edição bilíngue do clássico “As flores do mal”, com tradução de Margarida Patriota
Charles Baudelaire, autor de “As flores do mal”
13/03/2021

Charles Baudelaire nasceu em 9 de abril de 1821, em uma esquina parisiense que um dia seria ocupada pela livraria Hachette. Filho de pai sexagenário casado com mulher de 28 anos, o poeta francês ficou órfão ainda criança. Aos 7 anos, no ano seguinte à perda do pai, ganha um padrasto com o qual não se entende e é posto para estudar em regime de internato.

Nos anos escolares, veem-no solitário, dado a silêncios taciturnos e rompantes cínicos. O rendimento acadêmico é alto. Inscreve-se na Escola de Direito, mas não segue o curso. No limiar da idade adulta, leva uma vida dissipada, de que a família tenta arrancá-lo mandando-o de navio para a Índia, onde não chega, voltando à França a partir da ilha Bourbon, hoje Reunião.

Em 1842, a maioridade faz com que receba a herança que o pai lhe deixou. Mora com luxo, veste-se com requinte, leva um padrão de vida que lhe consome em pouco metade do herdado. Para impedi-lo de dilapidar o sustento, a mãe lhe impõe, via Conselho Judicial, módica renda mensal com que viver dali em diante.

Baudelaire firma relação com a afrodescendente Jeanne Duval, que lhe inspira alguns de seus mais belos poemas. Envolve-se com os meios literários, colabora com a pequena imprensa. Os ensaios Salão de 1845 e Pintura moderna dão-lhe nome como crítico de arte.

Além disso, traduz obras de Edgar Allan Poe; anda em companhia de Théophile Gautier, defensor da “arte pela arte”; frequenta o salão de Madame Sabatier, a quem vota paixão mística; divulga poemas em revistas de prestígio.

Em 1853, seu padrasto é eleito senador. Em Baudelaire, ao contrário, acentua-se o declínio físico e financeiro. Mora em lugares que chama de “buracos”, abusa do ópio e do haxixe. Em 1857, publica o conjunto de poemas amadurecidos ao longo dos anos — As flores do mal.

A justiça condena o livro por imoralidade, retira seis poemas da primeira edição, sem lhe empanar o quilate perante a comunidade intelectual e artística. O novo frêmito que introduz na poesia francesa é atestado por figuras de proa dentro e fora do país.

Em 1864, o poeta parte para a Bélgica a fim de realizar uma série de palestras e lá vive por dois anos. Minado pela sífilis, em 1866, trazem-no afásico e semiparalisado a Paris, onde morre em 31 de agosto de 1867. As flores do mal se torna, no Ocidente, a mais influente coletânea de poemas dos últimos séculos.

Remords posthume

Lorsque tu dormiras, ma belle ténébreuse,
Au fond d’un monument construit en marbre noir,
Et lorsque tu n’auras pour alcôve et manoir
Qu’un caveau pluvieux et qu’une fosse creuse;

Quand la pierre, opprimant ta poitrine peureuse
Et tes flancs qu’assouplit un charmant nonchaloir,
Empêchera ton coeur de battre et de vouloir,
Et tes pieds de courir leur course aventureuse,

Le tombeau, confident de mon rêve infini
(Car le tombeau toujours comprendra le poète),
Durant ces grandes nuits d’où le somme est banni,

Te dira: “Que vous sert, courtisane imparfaite,
De n’avoir pas connu ce que pleurent les morts?”
— Et le ver rongera ta peau comme un remords.

Remorso póstumo

Quando dormires, minha bela tenebrosa,
No fundo de tumba feita em mármore negro,
E não tiveres por alcova e por mansão
Mais que uma cova pluviosa e uma fossa oca;

Quando a pedra, oprimindo o teu peito medroso
E teus flancos que abranda um charmoso descaso,
Impedir teu coração de arfar e querer,
E teus pés de correr seu curso aventuroso,

O túmulo, guardião do meu sonho infinito
(Pois o túmulo sempre entenderá o poeta),
Nessas longas noites de que o sono é banido,

Dir-te-á: “Que te valeu, cortesã imperfeita,
Não teres conhecido o que choram os mortos?”
— E o verme roerá tua pele como um remorso.

………………. 

Les hiboux

Sous les ifs noirs qui les abritent,
Les hiboux se tiennent rangés,
Ainsi que des dieux étrangers,
Dardant leur oeil rouge. Ils méditent.

Sans remuer ils se tiendront
Jusqu’à l’heure mélancolique
Où, poussant le soleil oblique,
Les ténèbres s’établiront.

Leur attitude au sage enseigne
Qu’il faut en ce monde qu’il craigne
Le tumulte et le mouvement;

L’homme ivre d’une ombre qui passe
Porte toujours le châtiment
D’avoir voulu changer de place.

Os mochos

Nos teixos negros que os abrigam
Os mochos se perfilam em linha,
Tal como deuses estrangeiros
Faiscando olhos rubros. Meditam.

Sem se mexer se manterão
Até a hora melancólica,
Em que, empurrando o sol oblíquo,
As trevas hão de se implantar.

Sua atitude ensina ao sábio
Que neste mundo há que temer
A agitação e o movimento;

Atrás de uma sombra que passa
O homem é sempre castigado
Por querer mudar de lugar.

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Spleen

J’ai plus de souvenirs que si j’avais mille ans.

Un gros meuble à tiroirs encombré de bilans,
De vers, de billets doux, de procès, de romances,
Avec de lourds cheveux roulés dans des quittances
Cache moins de secrets que mon triste cerveau.
C’est une pyramide, un immense caveau,
Qui contient plus de morts que la fosse commune.
— Je suis un cimetière abhorré de la lune,
Où, comme des remords se traînent de longs vers
Qui s’acharnent toujours sur mes morts les plus chers.
Je suis un vieux boudoir plein de roses fanées,
Où gît tout un fouillis de modes surannées,
Où les pastels plaintifs et les pâles Boucher,
Seuls, respirent l’odeur d’un flacon débouché.

Rien n’égale en longueur les boiteuses journées
Quand sous les lourds flocons des neigeuses années
L’ennui, fruit de la morne incuriosité,
Prend les proportions de l’immortalité.
— Désormais tu n’es plus, ô matière vivante!
Qu’un granit entouré d’une vague épouvante,
Assoupi dans le fond d’un Sahara brumeux;
Un vieux sphinx ignoré du monde insoucieux,
Oublié sur la carte, et dont l’humeur farouche
Ne chante qu’aux rayons du soleil qui se couche.

Spleen

Tenho mais lembranças que se tivesse mil anos.

Uma grande cômoda cheia de balanços,
De versos, cartas de amor, processos, romances,
Com grossos cachos de cabelo entre quitanças,
Guarda menos segredos que meu triste crânio.
É uma pirâmide, um imenso sepulcro,
Que contém mais mortos do que a fossa comum.
— Eu sou um cemitério odiado da lua,
Onde como remorsos se arrastam os vermes
Que perseguem sempre os meus mortos mais queridos.
Sou um toucador cheio de rosas fanadas,
Onde jaz miscelânea de modas passadas,
Onde os pastéis plangentes e os Boucher aguados,
Sós, respiram o odor de um frasco destampado.

Nada iguala em tamanho os claudicantes dias,
Quando, sob os densos flocos das invernias
O tédio, fruto da triste incuriosidade,
Assume as proporções da imortalidade.
— Doravante tu não és mais, ó matéria viva!
Que um granito cercado de um vago pavor,
A dormir nos confins de um Saara brumoso;
Velha esfinge ignorada do mundo leviano,
Esquecida no mapa, e cujo humor cabreiro
Canta apenas aos raios do sol que se deita.

………………. 

La destruction

 Sans cesse à mes côtés s’agite le Démon;
Il nage autour de moi comme un air impalpable;
Je l’avale et le sens qui brûle mon poumon
Et l’emplit d’un désir éternel et coupable.

Parfois il prend, sachant mon grand amour de l’Art,
La forme de la plus séduisante des femmes,
Et, sous de spécieux prétextes de cafard,
Accoutume ma lèvre à des philtres infâmes.

Il me conduit ainsi, loin du regard de Dieu,
Haletant et brisé de fatigue, au milieu
Des plaines de l’Ennui, profondes et désertes,

Et jette dans mes yeux pleins de confusion
Des vêtements souillés, des blessures ouvertes,
Et l’appareil sanglant de la Destruction!

A destruição

Sem cessar a meu lado se agita o Demônio;
Nada à minha volta como um ar impalpável;
Eu o engulo e sinto que me queima o pulmão
E o preenche de um desejo eterno e culpável.

Toma às vezes, conhecendo meu amor da Arte,
A forma da mais sedutora das mulheres,
E, sob especiosos pretextos de rufião,
Acostuma meus lábios a filtros infames.

Ele me leva assim, longe do olhar de Deus,
Ofegante e morto de cansaço, até o meio
Dos campos do Tédio, profundos e desertos,

E lança em meus olhos cheios de confusão
Vestimentas imundas, feridas abertas,
E a aparelhagem sangrenta da Destruição!

………………. 

Les plaintes d’un Icare

Les amants des prostituées
Sont heureux, dispos et repus;
Quant à moi, mes bras sont rompus
Pour avoir étreint des nuées.

C’est grâce aux astres nonpareils,
Qui tout au fond du ciel flamboient,
Que mes yeux consumés ne voient
Que des souvenirs de soleils.

 En vain j’ai voulu de l’espace
Trouver la fin et le milieu;
Sous je ne sais quel oeil de feu
Je sens mon aile qui se casse;

Et brûlé par l’amour du beau,
Je n’aurai pas l’honneur sublime
De donner mon nom à l’abîme
Qui me servira de tombeau.

As queixas de um Ícaro

Os amantes das prostitutas
São felizes, dispostos, fartos;
Quanto a mim, fraturei os braços
Por haver abraçado nuvens.

É graças a astros sem igual,
Que nos confins do céu flamejam,
Que meus olhos depauperados
Só veem recordações de sóis.

Inutilmente eu quis do espaço
Localizar o fim e o meio;
Sob não sei que olho de fogo
Sinto minha asa que se parte;

E a queimar por amor ao belo,
Não terei a honra sublime
De dar o meu nome ao abismo
Que me servirá de jazigo.

As flores do mal [ao pé da fonte]
Charles Baudelaire
Trad.: Margarida Patriota
7Letras
432 págs.
Margarida Patriota

Carioca radicada em Brasília desde 1976, tem trinta livros publicados e foi professora do Departamento de Letras da Universidade de Brasília. Desde 1997, conduz e apresenta o programa Autores e Livros da Rádio Senado. Em poesia, publicou os livros Laminário (2017) e Tempo de delação (2019).

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