🔓 Pípi, Mími, Vóvi

Na flor de seus cinco anos, a pequena Lia desandou a criar alcunhas para os que a cercam — e com certa coerĂȘncia linguĂ­stica
Ilustração: Guilherme Paixão / Thapcom
10/02/2021

É costume se dizer que apelido sĂł pega quando o apelidado reage mal Ă  homenagem. O melindre seria a cola rĂĄpida capaz de atar definitivamente, ou quase, a alcunha ao indivĂ­duo. Falo a partir do que ouço, pois, tirando os previsĂ­veis diminutivos para alguĂ©m que mede 1m68 e cujo nome Ă© Marcelo, nunca tive apelidos muito sĂłlidos.

Na escola, em meio Ă  profusĂŁo de Marcelos, fui Marcelinho, Francisco, Chico – nesses dois casos, uma alusĂŁo ao segundo prenome. NĂŁo eram propriamente apelidos. Marcelo tambĂ©m deu origem a Tchelo, como alguns amigos da adolescĂȘncia me chamavam. Nenhum se firmou. Talvez porque faltasse aquele ingrediente gaiato, travesso, que serve de amĂĄlgama.

Dentro do universo familiar, contudo, apelidei praticamente todos os irmĂŁos. Para Mary, a mais velha, concebi o vocĂĄbulo “Bimã”. Imagino que seja uma corruptela de “irmã”. Sandra, sei lĂĄ por quĂȘ, era a “Kiká” e Lilian, a “Lilhá”. Com o nascimento do FlĂĄvio, dois anos mais novo, arranjei meu primeiro apelido. O “Cacá” que ele usava para me designar, e cuja procedĂȘncia atĂ© hoje desconhecemos, seria adotado tambĂ©m pela caçula FlĂĄvia. Mas ela nĂŁo se furtou a revelar a prĂłpria capacidade inventiva ao apelidar meu irmĂŁo. Na lĂ­ngua ainda embaçada da criança, o que era para soar como diminutivo carinhoso tomou contornos cruĂ©is. Ele virou o “Tadinho”.

Do ponto de vista etimolĂłgico, a palavra “apelido” vem do latim. Appelitare, radicado em appelare, significa “chamar”. O filĂłlogo DeonĂ­sio da Silva ensina que o termo se relaciona Ă  antiga raiz indo-europeia pel: agitar, sacudir. Provavelmente, especula o professor, porque no passado a linguagem oral nĂŁo bastava para se chamar a atenção de alguĂ©m. Era praxe se tocar no corpo da pessoa.

Os apelidos sĂŁo usados desde a Ă©poca da Roma antiga. No princĂ­pio, serviam para diferenciar indivĂ­duos que tĂȘm o mesmo nome. O uso galhofeiro, portanto, Ă© um fenĂŽmeno moderno.

A HistĂłria aponta que muitos apelidos acabaram se tornando sobrenomes. É o caso do toponĂ­mico e popularĂ­ssimo Silva, que, oriundo do termo em latim “selva”, designava moradores das regiĂ”es de mata. E tambĂ©m de Oliveira, Pereira, Lima, Pinheiro, relacionados a plantaçÔes ou marcos geogrĂĄficos. AliĂĄs, em Portugal, onde nasceram todos esses vocĂĄbulos, apelido significa sobrenome. O meu, por lĂĄ, seria simplesmente Moutinho.

O escritor inglĂȘs William Hazlitt dizia que “uma alcunha Ă© a pedra mais pesada que o diabo pode atirar em alguĂ©m”. Mas, em alguns casos, o apelido conquista tamanho protagonismo que Ă© incorporado ao nome completo. Aqui mesmo no Brasil temos um exemplo cĂ©lebre. O ex-presidente da RepĂșblica Luiz InĂĄcio da Silva — ele que recebera de Leonel Brizola, notĂłrio apelidador, o epĂ­teto de Sapo Barbudo — incluiu o “Lula” na certidĂŁo de nascimento. Entre as tantas pedras que tem carregado nos Ășltimos tempos, nĂŁo consta que seja a mais pesada.

Toda essa digressĂŁo, porĂ©m, Ă© apenas para contar que finalmente ganhei um novo apelido: PĂ­pi. É como Lia me chama faz alguns meses. Na flor de seus cinco anos, ela desandou a criar alcunhas para os que a cercam — e com certa coerĂȘncia linguĂ­stica. A mĂŁe tornou-se MĂ­mi; a avĂł, VĂłvi. O gato Tobias, recĂ©m-chegado, logo variou para “TĂłbi”.

Desconfio que essa vontade em rebatizar o entorno tenha relação com Marcelo marmelo martelo. JĂĄ na estreia, o livro de Ruth Rocha sagrou-se o campeĂŁo no rol afetivo das nossas leituras prĂ©-sono. Talvez, assim como o protagonista da histĂłria infantil, Lia queira dar um toque pessoal aos signos, embora sem desconectar a nova palavra daquilo, ou daquele, que nomeia. “Papai” existem muitos, “PĂ­pi” Ă© o papai dela.

Sem saber, minha pequena restaurou em Ăąmbito familiar a gĂȘnese do vocĂĄbulo. Quando ouço sua voz aguda pronunciando o apelido com as duas sĂ­labas terminadas em “i”, Ă© como se ela ternamente me tocasse, sacudisse qualquer resquĂ­cio de angĂșstia.. Seja nos momentos idĂ­licos, de carinho profundo, seja no estridente berro que vem do banheiro, Ă  guisa de convocação: “PĂ­pi, fiz cocĂŽ!”.

Marcelo Moutinho

É autor dos livros  A lua na caixa d’ĂĄgua (PrĂȘmio Jabuti 2022), A palavra ausente (2022), Rua de dentro (2020), Ferrugem (PrĂȘmio da Biblioteca Nacional 2017), Na dobra do dia (2015), e dos infantis Mila, a gata preta (2022) e A menina que perdeu as cores (2013), entre outros.

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