🔓 Ótimo bar ruim

A “alma” do bar é seu bem mais precioso; sem ela, é melhor que acabe de vez e que seus órfãos fiquem com os grandes momentos na memória
Ilustração: Thiago Lucas
09/03/2022

Estive poucas vezes no Bar Filial, que costumava lotar a esquina entre as ruas Fidalga e Aspicuelta, na Vila Madalena. A mais memorável — ou desastrada, dependendo do ponto de vista —, uma noite pós-show dos irmãos Ramil, na qual resolvi fazer graça com o cachecol que Kleiton ostentava ao entrar no estabelecimento. “Tá com frio, tchê?”. De resposta, um boa noite polido.

Com as idas a São Paulo rareadas pela pandemia, não soube que o Filial havia fechado as portas. Tampouco sobre sua reabertura, em janeiro deste ano, sob nova administração. Quem me deu a notícia foi o jornalista Marcos Nogueira, que mantém o blog Cozinha Bruta no site da Folha de S. Paulo. Frequentador do Filial por mais de dez anos, Nogueira publicou uma bela e melancólica resenha sobre o espaço repaginado e agora gerido pelo grupo Fábrica de Bares. “O Filial renasceu: não estaria melhor morto?”, indaga ele no texto.

A pergunta traz o eco das noites passadas ali, entre conversas, calderetas e, não raro, cadeiras de ponta-cabeça. Com a intimidade de quem batia ponto quase diariamente no lugar, Nogueira lembra dos bolinhos de arroz bem fritos, do caldo de feijão com torresmo, da coxinha gostosa, “sempre fria no meio”. E não se furta a comparar: “A comida não está pior do que antigamente, talvez esteja melhor, mas pouco importa”. O Filial, sugere ele, perdeu aquilo que mais vale num bar: sua alma.

Sim, porque parafraseando o cronista João do Rio, certos bares têm alma. Outros, por melhores que sejam a cozinha, o serviço, as instalações, parecem corpos sem espírito. Podem agradar aquele cliente pretensamente antenado cujo gosto se define pelas listas da moda, pelo drink do momento, mas o encanto é fugaz. Como a bolha de sabão que infla, brilha por alguns segundos e logo se dissipa. Evoco um segundo cronista, o mineiro Paulo Mendes Campos: esses bares podem merecer nosso entusiasmo, mas jamais merecerão o nosso amor.

A alma, aliás, é o segredo de um dos maiores paradoxos da boemia: o ótimo bar ruim. Não, caro leitor, não se trata de erro da revisão. Os adjetivos colidentes aqui se justificam.

Refiro-me àquele boteco que não se destaca por suas dependências, que serve um chope não mais que mediano, cujos petiscos ficam no limite do insosso, mas nos ganha pelo universo que encerra em si mesmo. Pelo prazer intangível de simplesmente se estar ali.

O Rio de Janeiro é pródigo nesse tipo de bar. São Paulo, como mostra Marcos Nogueira, também tem os seus. E assim cada diferente cidade ao longo do país. O ótimo bar ruim é uma instituição genuinamente brasileira.

Mas, seja um ótimo bar no sentido estrito ou um ótimo bar ruim, há algo que não muda. O fato de que a perda da alma significa, inexoravelmente, o seu fim. Ainda que, após encerrar as atividades, seja reinaugurado com o nome de sempre, os mesmíssimos móveis, no endereço original.

Por isso fecho com meu colega paulista. Sem alma, melhor que acabem de vez. E fiquemos nós, seus órfãos, a recordá-los, a contar as suas, as nossas histórias. Uma forma mais digna de não deixá-los morrer.

Marcelo Moutinho

É autor dos livros  A lua na caixa d’água (Prêmio Jabuti 2022), A palavra ausente (2022), Rua de dentro (2020), Ferrugem (Prêmio da Biblioteca Nacional 2017), Na dobra do dia (2015), e dos infantis Mila, a gata preta (2022) e A menina que perdeu as cores (2013), entre outros.

Rascunho