🔓 O humor morreu

Parece que o humor deixou de ser um jeito de ver a realidade: hoje enxergamos tudo pelos óculos da seriedade e pela lente de contato da melancolia
Ilustração: Thiago Lucas
13/06/2022

Sim, morreu. Ou, no mínimo, está em coma.

Não, não é exagero. Dê lá uma olhada na lista dos livros brasileiros mais vendidos deste mês. Entre os cinco primeiros há um juvenil e quatro adultos, que são: Torto arado, Tudo é rio, Quarto de despejo e O avesso da pele. Todos ótimos, sem dúvida. Mas a questão é outra. É que um modo de escrever está dando seus últimos suspiros.

Culpa dos leitores, dos escritores, dos editores ou de todos? Nem imagine que eu tenha a resposta.

Pensei que essa minha impressão pudesse ser causada por um instantâneo desfocado, então resolvi fazer uma pesquisa errática pela lista dos mais vendidos do Publishnews (sempre na categoria ficção). E nos últimos sete anos só achei um livro de humor, o da Kéfera Buchman, uma das principais youtubers do Brasil. Seu nome é Querido dane-se. Aliás, não deveria haver uma vírgula depois de “querido”? Ah, pobre vocativo, foste enterrado junto com o chiste…

Curiosamente, vi vários clássicos na lista dos mais vendidos, como Angústia, Vidas secas e A hora da estrela. Um trio tão excelente quanto triste. Mas não encontrei Memórias póstumas de Brás Cubas, Macunaíma ou Serafim Ponte Grande.

Minha impressão é que antigamente sempre havia algum escritor engraçadinho entre os dez mais. Podia ser o Verissimo, com seu genial domínio do ritmo, o Millôr, com sua criatividade inesgotável, Galvez, o imperador do Acre, um livro sensacional de Márcio Souza, ou até O melhor do mau humor, uma coletânea do Ruy Castro que, apesar do nome, tinha muito bom humor. Hoje em dia, não sei se haveria lugar para eles no panteão dos best-sellers.

Pelo que vi nessas listas, a literatura infantojuvenil mantém-se como um refúgio para o humor, como se às crianças ainda fosse permitido sorrir. Mas, em minha pesquisa sem método, os dois livros que mais apareceram entre os mais mais foram O Pequeno Príncipe, que é a história de um garoto que se suicida, e O meu pé de laranja lima, que me fez chorar aos soluços quando tinha dez anos.

Para me consolar, pensei que na imprensa há ótimos escritores de humor, como Antonio Prata, Gregório Duvivier e Tati Bernardi. Mas, para estragar esse consolo, lembrei que já não temos nada que lembre publicações como A Manha, O Pasquim, Planeta Diário, Casseta Popular ou Bundas. E até a revista Mad fechou.

Com nomes como Gregório de Matos, Mário e Oswald de Andrade, Campos de Carvalho, Ivan Lessa, João Ubaldo Ribeiro, Rubem Braga, Manuel Bandeira, Barão de Itararé, Stanislaw Ponte Preta e, é claro, Machado de Assis, pensei que o humor fosse um traço eterno na literatura brasileira. Mas talvez tenha sido apenas uma ilusão passageira. Ou duradoura.

A morte do humor transborda para outras linguagens. Na tevê, não temos mais Chicos Anísios e Jôs Soares. E TV Pirata e Casseta & Planeta também não deixaram herdeiros no horário nobre.

Na música, já vai longe o tempo do Premeditando o Breque, do Língua de Trapo e dos Mamonas Assassinas. E nem é bom pensar no que era o Ultraje a Rigor e no que virou seu vocalista.

Parece que o humor deixou de ser um jeito de ver a realidade. Hoje enxergamos tudo pelos óculos da seriedade e pela lente de contato da melancolia.

A culpa será de Bolsonaro, que é quase um sinônimo de tristeza e faz péssimas piadas, desmoralizando o humor? Será de uma esquerda ranzinza, que virou um clube de censores ranhetas? Será dos centristas, que nunca fazem nada de graça? Será da realidade? Da certeza incontornável da morte? Não sei.

Mas acho que, em breve, os engraçadinhos terão que se encontrar em algum bar (que terá um nome de gosto duvidoso, como Bar Rabás, Bar Bitúrico ou Bar Baridade) e ali, tomando cervejas e caipirinhas (jamais vinho ou uísque) contarão piadas em voz baixa, sussurrarão trocadilhos e darão risadas abafadas.

Caros Rabelais, Swift, Cervantes, Sterne, Calvino, Vonnegut e Machado, sinto dizer-vos que os tempos não são de bons humores. Que desgraça…

José Roberto Torero

Escritor e roteirista, Torero nasceu em Santos (SP), em 1963. É autor de O chalaça (prêmio Jabuti na categoria romance em 1995) e Os vermes, entre outros. Também é autor de livros de não ficção e de literatura infantojuvenil. Ao lado de Paulo Halm, assinou o roteiro do longa-metragem Pequeno dicionário amoroso.

Rascunho