🔓 O Galo de Botafogo Oriental

O estranho galo que vive num batalhão de polícia, cisca entre as mesas dos bares e decide cantar com o sol a pino
Ilustração: Thiago Thomé Marques
25/08/2021

Em 2015, vim morar na Rua Álvaro Ramos. A via fica em região que um amigo jocosamente batizou de “Botafogo Oriental”. Isso porque, até bem pouco tempo atrás, era a área menos valorizada do bairro. O verbo no passado se justifica. Pouco a pouco, as oficinas mecânicas deram lugar a cevicherias, bistrôs, bares descolados e barbearias hipsters. A gentrificação chegou chegando.

Pois foi aqui que, há dois ou três anos, ele apareceu. O “pintinho sura”, como denominou meu letrado vizinho Jason Vogel, em citação de Monteiro Lobato. Conta o Jason que o dito cujo certo dia simplesmente deu as caras (ou seria o focinho?) na Rua Fernandes Guimarães, perpendicular à Álvaro. Não se sabe de onde veio, onde foi parar a mãe, se é filho único ou se desgarrou dos irmãos.

“Quem o via, raquítico, ciscando por entre gatos e automóveis, imaginava que seu futuro seria breve”, relata Jason, sem disfarçar a simpatia pelo bicho.

Enganavam-se.

Hoje, o ex-sura é um portentoso galo. Penas pretas e esguias, encimadas por uma coloração caramelo que realça o contraste, crina altiva em vermelho vivo. “Um bonito mestiço com boa composição de Rhode Island Red”, na acurada definição de um tio cujo nome o Jason não externou.

Não entendo do riscado, como o tio do meu amigo, mas sei que Rhode Island é um estado norte-americano. E bastou uma rápida pesquisa para descobrir que a raça a que ele fez referência foi desenvolvida lá mesmo nos Estados Unidos, na segunda metade do século 19. Consta que os Rhode Island Red podem se mostrar bastante ariscos e agressivos. Costumam atacar estranhos que se aproximam — sejam os humanos, sejam os de sua espécie —, quando se sentem ameaçados. Não é o caso do nosso vizinho penoso. Se está bem longe de aparentar docilidade, pelo menos nunca agrediu ninguém. Quem sabe um efeito da miscigenação galiforme.

De bobo, e isso eu posso garantir, ele não tem nada. O ditado diz que malandro é o gato, que já nasceu de bigode. Pois o ex-sura não fica atrás. Logo que ganhou corpo, passou a morar dentro do 2o Batalhão da Polícia Militar, a uns cem metros de onde escrevo estas linhas agora. Numa cidade tão insegura, garantiu proteção e um leito quentinho para as noites gélidas do inverno.

Passa quase todo o tempo lá. Talvez tenha se acostumado à vida de solteiro e à consequente abstinência sexual. Afinal, não há registro da presença de galinhas pelas redondezas. Nas raras vezes em que sai do Batalhão, é para olhar as modas no esquema bate e volta. Aconteceu no sábado passado. Eu almoçava numa das mesas externas da Liga dos Botecos e flagrei-o borboletando, imponente, pela filmagem de uma série televisiva que acontecia ao longo da rua. Logo o espantaram. Ele voltou para o abrigo policial, sem protestar ou atrapalhar as cenas. Foi aplaudido pela equipe.

Na curta biografia que fez para reportar ao mundo a existência de nosso vizinho galináceo, o Jason me pediu que escrevesse uma crônica sobre o assunto. Pois aí está. Mas eu não poderia botar o ponto final no texto sem revelar a principal virtude do Galo de Botafogo Oriental: ele acorda — e, portanto, canta — só por volta de meio-dia. Avis rara.

Marcelo Moutinho

É autor dos livros  A lua na caixa d’água (Prêmio Jabuti 2022), A palavra ausente (2022), Rua de dentro (2020), Ferrugem (Prêmio da Biblioteca Nacional 2017), Na dobra do dia (2015), e dos infantis Mila, a gata preta (2022) e A menina que perdeu as cores (2013), entre outros.

Rascunho