🔓 O domingo da mãe

Uma folga do filho e suas quinquilharias se transforma também em uma folga para o corpo
Ilustração: FP Rodrigues
06/03/2023

Eu ando bastante atarefada. Além do trabalho normal, aquele de carteira assinada, crachá com a minha foto e quarenta horas semanais, tenho me comprometido cada vez mais com a literatura e seus desdobramentos. Finalizando um livro novo, ministrando uma oficina e estruturando outra, alguns alunos de mentoria e projetos de leitura crítica, essa coluna. Fora isso, a vida que acontece: o armário do banheiro que implora por socorro há meses, minha jabuticabeira que perdeu todas as folhas em uma semana e agora também implora por socorro, a cama do meu filho que para ficar arrumada precisa de uma colcha, uma almofada grande de bolas, duas almofadas de arco-íris, uma almofada de bola de chutebol, uma almofada de astronauta, duas almofadas pequenas, uma raposa, e um bicho-papão — tudo escolhido por mim. O mercado, a unha do pé, os trabalhos da pós-graduação.

De modo que, quando meu marido declarou, no domingo de manhã, que ia sair com o menino, que ia nadar na casa da avó, que não voltava pra almoçar, o meu coração se empolgou. Umas cinco, talvez seis horas para render, organizar, produzir, entregar. Um tempo precioso para trabalhar sem culpa, porque esse é o maior problema quando Antônio está por perto. Eu posso trabalhar, claro que sim, me fecho ali no escritório, me concentro, mas lá no fundo fico ouvindo sua risada ou seu choro, seu carro que vira robô e faz um barulho insuportável, suas boas ideias (e outras nem tanto). E aí, fico querendo estar em outro lugar, querendo estar perto, a culpa é uma merda, eu sei. Mas saber disso não faz com que ela suma de uma hora pra outra e estes são os fatos.

Saíram os dois, em trajes de banho, cheirando a protetor solar, Antônio chorando porque a cachorra comeu seu dinossauro (nota mental: jogar fora os restos mortais antes que ele volte). Eu, feliz, sabia que seria um domingo divertido pra eles, um dia produtivo pra mim — e isso também é um bom domingo. Passei um café, peguei um bombom (dois) e me encostei rapidinho na cama, pra terminar de assistir a um episódio da minha série, porque havia pegado no sono na noite anterior. Era tipo onze da manhã.

Não terminei a série, outra vez. Abri os olhos e era quatro e quarenta da tarde, acordei achando que era a manhã do dia seguinte, que não tinha colocado despertador e já estava atrasada pro trabalho, o caos. Precisei de um tempo pra voltar pro lugar, voltei. Nem vinte minutos depois, o portão da garagem e a voz do meu filho:

— Mamãe, chegamos.

O melhor abraço.

Um dia produtivo pode ser entregar ao corpo o que ele está precisando.

Enquanto penso, me lembro que era exatamente isso o que a minha avó dizia: o corpo pede, minha filha. Escuta.
Tá bom, vó.

Agora vou ali brincar.

Marcela Dantés

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1986. Lançou em 2016 a coletânea de contos Sobre pessoas normais (Patuá). Seu primeiro romance, Nem sinal de asas (Patuá), foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2021 na categoria Melhor Romance de Estreia e do Prêmio Jabuti 2021, na categoria melhor Romance Literário. Em 2022, lançou João Maria Matilde, pela Autêntica Contemporânea.

Rascunho