🔓 Mito zero

Eu nasci sem bússola, então essas informações são inúteis para mim; nunca sei para que lado está absolutamente nada
Morro do Castelo, no Rio de Janeiro, no início do século 20
11/03/2021

São 4 horas da manhã e o meu cérebro me faz pegar o celular para verificar se o marco zero de São Paulo, o monumento na Praça da Sé, tem o CEP zero também. É tão bom quanto: 01001-001. Quase um código binário. Só que agora eu acordei.

Para quem não conhece, o marco zero paulistano é um prisma hexagonal que indica a direção para a cidade de Santos e para os estados do Paraná, o Rio de Janeiro, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso. Teoricamente marca o centro geográfico da cidade, mas do jeito que São Paulo cresce, eu duvido que isso ainda seja 100% verdade. De toda forma, se você sabe para que lado fica a Sé, sabe de onde começa a numeração das ruas.

Eu nasci sem bússola, então essas informações são inúteis para mim. Eu nunca sei para que lado está absolutamente nada.

Já me perdi em Ipanema, no Rio, andando a pé, sendo que o bairro é basicamente formado por duas grandes avenidas cercadas, de um lado, por uma enorme montanha e, do outro, por um acidente geográfico insignificante chamado Oceano Atlântico. E eu me perdi. E sim, eu sou carioca. Uma vergonha de carioca, eu sei.

Para complicar a minha vida, São Paulo é toda radial. É a única cidade que eu conheço em que você vira quatro vezes para o mesmo lado e não volta para o local de origem. Se eu já me perco em cidades com a malha retangular, imagine em um lugar onde saber para onde está o norte importa. Não sei nem o norte metafórico da minha vida, que dirá na geografia. Desisti faz tempo.

A internet me informa que o marco zero atual de São Paulo é a última de quatro tentativas frustradas e que foi tombado em 2007, precisamente o ano em que migrei para a terra da garoa.

O marco zero do Rio de Janeiro é a Igreja dos Capuchinhos, na Tijuca, implantado por Estácio de Sá, em 1565, entre os morros Cara de Cão e Pão de Açúcar. E eu, que morei mais de 3 décadas da minha vida no Rio, jamais estive por lá. Talvez porque o marco zero do Rio não serve para muita coisa. Não tenta ser o centro de nada, não ajuda na numeração ou localização, não indica a direção de lugar nenhum.

O Morro do Castelo, onde o Rio de Janeiro começou, foi destruído em 1922 pelo prefeito Carlos Sampaio. A parte material do morro foi usada para aterrar parte da Urca, da Lagoa Rodrigo de Freitas, do Jardim Botânico e outras áreas ao redor da Baía da Guanabara. A parte imaterial existe hoje apenas na memória.

Um pouco antes, em 1912, três projetos de destruição do Morro do Castelo foram levados ao Congresso. O assunto era polêmico e as discussões, acirradas. Dos nomes que nos interessam aqui, Lima Barreto foi a favor da destruição e Monteiro Lobato, contra.

Os dois maiores problemas que os líderes da época tinham com o Morro do Castelo eram que dificultava a circulação de ar para as partes nobres da cidade e que estava cheio de pobre. Eles achavam que os cortiços eram ruins para a saúde pública.

Tenho para mim que o Carlos Sampaio, no fundo, acreditava na lenda do morro do Castelo e mandou destruir a montanha em busca do fictício tesouro escondido em túneis secretos construídos pelos jesuítas. Esse mito urbano foi explorado pelo Machado de Assis, em uma crônica de 1893:

Se crer em tesouros escondidos na terra é o mesmo que escondê-los, confesso o meu pecado, porque acredito nos que estão no morro do Castelo, como nos cento e cinquenta contos fortes do homem que está preso em Valhadolide. São fortes; segundo o meu criado José Rodrigues, quer dizer que são trezentos contos. Creio neles. Em vida fui amigo de dinheiro, mas havia de trazer mistério. As grandes riquezas deixadas no Castelo pelos jesuítas foram uma das minhas crenças da meninice e da mocidade; morri com ela, e agora mesmo ainda a tenho. Perdi saúde, ilusões, amigos e até dinheiro; mas a crença nos tesouros do Castelo não a perdi. Imaginei a chegada da ordem que expulsava os jesuítas. Os padres do colégio não tinham tempo nem meios de levar as riquezas consigo; depressa, depressa, ao subterrâneo, venham os ricos cálices de prata, os cofres de brilhantes, safiras, corais, as dobras e os dobrões, os vastos sacos cheios de moeda, cem duzentos, quinhentos sacos. Puxa, puxa este Santo Inácio de ouro maciço, com olhos de brilhantes, dentes de pérolas; toca a esconder, a guardar, a fechar…

Ou seja, não é a primeira vez que temos governantes que não gostam de pobre e que acreditam em mitos e lendas. Ou cloroquina. Dá no mesmo.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

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