🔓 Minha primeira vez

À beira dos sessenta anos, o cronista descobre o árduo trabalho e o imenso prazer de fazer uma HQ
Ilustração: André Bernardino. Colorista: Fabi Marques
10/07/2022

Estou eu à beira dos sessenta anos (na verdade, 58, mas com corpinho de 59) e pensava que não teria mais primeiras vezes. Ou, pelo menos, que não teria mais boas primeiras vezes. Meu cálculo é que, doravante, minhas estreias seriam apenas em exames médicos que nunca tinha feito, remédios que jamais havia tomado, etc…

Mas não, eu estava errado. Acabei de perder mais uma virgindade. E em literatura.

Nessa área, já fiz um pouco de tudo: romance, conto, crônica, biografia, livro infantil, juvenil, umas poesias (que escondo), peça de teatro, roteiros de curtas-metragens, de longas e séries.

Porém, só agora fiz minha estreia no mundo das histórias em quadrinhos.

Desde minha distante infância, gosto de HQs. Li muito Turma da Mônica, Homem-Aranha, Hulk, Batman (nunca simpatizei com o Super-Homem), X-Men e umas coisas diferentes, como Príncipe Valente, Flash Gordon, Metal Hurlant, Moebius, Milo Manara, Neil Gaiman etc… Mas nunca pensei que fosse ser o autor de uma.

Fui. E foi emocionante.

Produzir alguma coisa de que você gostava muito quando criança traz uma alegria especial.

É como se eu conseguisse fazer os bolinhos de banana de minha avó, o mexidão de meu pai ou o salpicão de frango de minha mãe (coisas que até hoje não consigo). É como se eu realizasse algo reservado aos adultos.

Pois bem, fazer essa HQ [que se chama Super-Zé e (olha aí o mercham) está em pré-venda no Catarse até dia 16] teve uma parte difícil e outra dificílima.

A difícil foi montar o argumento. Na verdade, eu e Marcus Aurelius Pimenta ficamos uns cinco anos escrevendo um romance em que o personagem principal era um jovem que se transformava num super-herói.

Queríamos um livro para adultos, mas que também fosse apreciado por adolescentes. Aos poucos, em nossa metodologia meio imbecil de reescrever muitas vezes, fomos acertando o tom, o enredo, etc… E conseguimos acabar o livro. Mas, antes que ele fosse publicado (se é que algum dia será), ganhei um prêmio (um edital Proac) para transformar a história em HQ.

E aí veio a parte dificílima: fazer o roteiro.

Achava que seria como escrever um longa-metragem, já que a HQ teria umas 120 páginas e o roteiro de um longa também tem esse tamanho. Mas não.

Um roteiro de longa tem umas 100 cenas, ou seja, pede umas 100 descrições + diálogos. Mas num roteiro de HQ temos em média seis quadros por página, cada um com sua descrição e diálogos. E para cada um dos quadros há que descrever o ponto de vista, as falas dos personagens, a ação etc… Ou seja, a verdadeira conta é 6 x 120 = 720.

Na verdade, minha matemática foi meio dramática, porque as descrições nas HQs são menos detalhistas, mas, mesmo assim, é mais trabalhoso do que escrever um longa-metragem.

Outra dificuldade é que você tem que pensar na diagramação da página. Quando ela terá só um grande quadro? Quando terá quadros mais horizontais? Haverá uma página com 16 quadros do mesmo tamanho?

Em resumo: descobri que, para você fazer o roteiro de uma HQ, você tem que ter pelo menos quatro habilidades: bolar uma boa história, fazer diálogos interessantes, enquadrar bem a cena e, por fim, deve ter um pé nas artes plásticas e pensar no desenho geral da página.

Dá um trabalho do cão.

Mas é divertido pra cachorro!

José Roberto Torero

Escritor e roteirista, Torero nasceu em Santos (SP), em 1963. É autor de O chalaça (prêmio Jabuti na categoria romance em 1995) e Os vermes, entre outros. Também é autor de livros de não ficção e de literatura infantojuvenil. Ao lado de Paulo Halm, assinou o roteiro do longa-metragem Pequeno dicionário amoroso.

Rascunho