🔓 Meu ano fazendo livros

“Meu ano em Nova York”, que acompanha uma poeta trabalhando para a agente de Salinger, é um bom filme para quem pensa em mergulhar no mundo da editoração
Ilustração: Eduardo Souza
11/01/2022

Ver filmes não está na minha lista de prioridades. Mas, quando a companhia é boa, os itens da tal lista mudam de lugar e dão ensejo a ótimas tardes chuvosas diante da TV ou noites no aconchego das almofadas. Foi assim que assisti a quase 100% dos filmes anotados nos últimos três anos; também foi assim que conheci ótimas tramas e bons elencos, em especial no tema da edição, da leitura, dos livros e da escrita. Monotemática, eu? Com orgulho.

Passei grande parte da pandemia (que está em curso, frisemos) trancada em casa, trabalhando triplicado, sem ser vista pela vizinhança, quase perdendo o rumo do local de trabalho presencial, lidando com fortes sensações de medo e alívio, ambiguidade ainda não resolvida. De vez em quando, parei para assistir a algum filme que constasse num livro bem especial chamado Edição, livros e leitura no cinema, organizado por Letícia Santana Gomes e publicado pela pequena e brava Contafios, numa sacada genial. A perspectiva é editorial, claro, e a paleta de filmes que aparece no sumário se transformou numa espécie de missão que eu deveria cumprir. E cumpri, descontando os filmes que já conhecia antes de ler o livro.

No entanto, não é de lá minha última experiência desse tipo. A obra não dá conta de tudo, é claro, mas nos anima a procurar por películas temáticas muito interessantes para a discussão ampla sobre edição, livro e leitura, geralmente com foco na publicação de livros escritos por autores conhecidos. Não se deixa de mirar no leitor, no entanto. A leitura protagoniza muitas e belas histórias no cinema, revolucionárias, em sentido micro ou macro, ajudando a clarear esse aspecto político e civilizatório que a leitura tem.

Meu ano com ele
Embora a lista de Edição, livros e leitura no cinema seja finita, as possibilidades de filmes que vão surgindo não é. E há algumas semanas venho ruminando sobre o que dizer a respeito de Meu ano em Nova York, como ficou na tradução ao português. Imagino as razões de esse título não ter sido traduzido mais próximo do original My Salinger year, e até gostaria de ter assistido a essa discussão. Vamos ao que poderia incluí-lo no sumário da coletânea de Letícia Gomes, quem sabe do volume dois. #ficaadica

A produção canadense My Salinger year está disponível na Netflix e andou também pelas salas de cinema. Lançada em 2021, teve direção e roteiro de Philippe Falardeau, inspirado no livro de Joanna Smith Rakoff (o velho e sempre atual caminho livro-filme). Contou com um elenco estrelado, protagonizado pela jovem Margaret Qualley em interação constante com a veterana Sigourney Weaver (nada de alienígenas, por ora… quer dizer, mais ou menos). Não pude deixar de sentir um tequinho de O diabo veste Prada na atuação da respeitada agente literária, fria, dura, convencional e editorialmente conservadora, vivida por Weaver. No entanto, o foco estava na jovem Joanna, espécie de estagiária da agência literária da reputada Margaret (personagem de Sigourney), que administrava nada menos que a obra de J. D. Salinger, um escritor best-seller e cheio de idiossincrasias, tratado a pão de ló.

Pelo menos dois conflitos ficam evidentes na trama, para além das morrinhentas vidas amorosas da jovem Joanna ou da de sua chefe: os tensionamentos tecnológicos no mercado editorial, provocadores de mudanças importantes nos modos de produzir e fazer circular livros na virada do milênio, e a ambiguidade interna vivida pela protagonista, que almejava ser, afinal, escritora, e não editora ou agente literária (aqui, velhas polarizações). Ao longo do filme, fica claro que escritoras são evitadas nas vagas para estágio na agência. Escritoras se metem, querem ter as vidas dos agenciados, não se contêm, não se contentam, querem crescer mais do que o devido ou, como diria o revisor de textos Raimundo, personagem célebre de Saramago, são sapateiros que sobem acima das chinelas. A despeito dos avisos, Joanna estabelece interações com fãs de Salinger e com o próprio autor, por telefone, para além do permitido, enquanto, em sua vida privada, escreve poemas e tece suas redes intelectuais que a levarão a publicar na mais importante e desejada revista literária de Nova York, a The New Yorker (alerta de spoiler). Bom, mas até chegar aí tem muito chão, muita paciência e muita reflexão. E cá da realidade sabemos: é filme, é uma viagem, é delirante, não é tão fácil assim.

Vale a viagem
Água com açúcar, mamão com mel e quetais. Uma protagonista recém-formada em literatura parte para uma das cidades mais badaladas do mundo e fisga um emprego invejável, isto é, para quem gosta da coisa, na agência de um dos mais famosos escritores do planeta. Mesmo escrevendo à máquina em plenos anos 1990, no berço da computação, e redigindo cartas à mão, Joanna consegue amolecer um pouco o coração da chefa e mover algumas montanhas nas práticas profissionais cristalizadas ali. Salinger? É pano de fundo, embora permeie tudo o que rola na história. Joanna? Precisa se decidir; e se decide.

Detalhar demais é chato. Já dei spoiler que chega. Dica para tardes de sábado chuvoso, noites infinitas de domingo, de preferência sem sono. Dizem as fichas técnicas que se trata de um drama. Ecos de outras películas, atrizes notáveis, paisagens urbanas, sonhos de muita gente: escrever, publicar e ser bem-sucedida. Nuanças de uma profissão ainda pouco conhecida no Brasil, a de agente literária, carreira geralmente construída por quem acumulou capital simbólico por décadas. Vai ver foi isso que me deixou cabreira. Ainda não consegui escolher (e talvez nem dependa disso), muito menos entender o tamanho da encrenca. Enquanto isso, vale embarcar no sonho de um filme simpático como este.

Ana Elisa Ribeiro

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1975. É autora de livros de poesia, conto e crônica, infantis e juvenis, tendo estreado com um volume de poemas em 1997. Teve colunas fixas em algumas revistas desde 2003 e publicou quatro livros de crônicas reunidas: Chicletes, Lambidinha & outras crônicas (Escribas, 2012), Meus segredos com Capitu (Escribas, 2013, semifinalista Portugal Telecom), Doida pra escrever (Moinhos, 2021) e Nossa língua & outras encrencas (Parábola, 2023). É professora da rede federal de ensino e pesquisadora das mulheres na edição.

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