🔓 Mais um dia de surdez

É preciso desenvolver alguma insensibilidade para sobreviver ao Brasil, mas participar de uma festa com quinhentas pessoas é um salto extremo à surdez
02/03/2021

O excesso é uma forma de dar sumiço às coisas. Posso chegar a essa conclusão com a ajuda de importantes filósofos da pós-modernidade que articulam uma lição que aprendi com Wally. Quando eu era criança, um dos meus passatempos preferidos era procurar pelo rapaz de camisa listrada e bengala nos livros Onde está Wally? Embora viajasse por lugares os mais variados, Wally sempre acabava em lugares extremamente lotados de gente. Seu poder de desaparecer a olhos vistos dependia apenas do entorno. Com suficiente excesso, Wally ficava invisível (quase, ou não haveria jogo).

O mesmo serve para a audição. O compositor e pesquisador musical Murray Schafer apontou como a superexposição a ruídos mecânicos e digitais gera uma surdez para os sons do mundo. Nos seus laboratórios no Canadá, Schafer vem demonstrando que as pessoas estão cada vez menos capazes de distinguir sutilezas melódicas, profundidade sonora e diferenças de timbres.

Lembrei de Wally e de Schafer quando li que animais marinhos estão ficando surdos por nossa culpa. Segundo conta o New York Times, os peixes-palhaço começam a vida como larvas à deriva no oceano. Quando eles ganham tamanho e força suficientes para nadar, eles voltam para os recifes de corais onde passarão o resto da vida. Os peixes-palhaço não enxergam os recifes, mas eles os escutam: ouvem o barulho específico da água ao redor deles, as borbulhas de ar e todos os demais sons que nós, humanos, seremos incapazes de descrever com nosso vocabulário formatado para o mundo não-submerso. Então os peixinhos seguem os ruídos e chegam em casa. Exceto que eles não conseguem mais ouvir os recifes porque nós causamos um excesso de poluição sonora no oceano.

Os navios, as pesquisas sísmicas, a pesca com dinamite, as plataformas de perfuração e coisas do gênero têm tornado o ambiente marinho ensurdecedor. Os peixes-palhaço ficam condenados a peregrinar sem rumo para sempre. Outros animais também são afetados, uma vez que muitos se comunicam por meio de sons. Nossos ruídos antropogênicos no mar são como a obra de um vizinho que se arrasta por toda a eternidade.

Penso nisso quando mais uma vez pego o celular para rolar a tela de notícias recentes. Tento entender como é possível que na capa de todos os jornais haja, simultaneamente, o alarme de que os hospitais estão operando acima da capacidade e as fotos de aglomerações que a polícia dispersou na noite anterior. Um ano de pandemia: será que há tantas notícias terríveis que não as enxergamos mais? É preciso desenvolver alguma insensibilidade para sobreviver ao Brasil, isso é certo, mas daí a participar de uma festa com quinhentas pessoas é um salto extremo à surdez.

A surdez, em todo caso, tem sido a estratégia deste governo. Quando as coisas vão mal, cria-se suficiente ruído para que não se entenda mais nada. Desde o início da pandemia, os cidadãos brasileiros (os de bem e os de mal) são deixados a esmo como os peixes-palhaço que não encontram seus recifes. Recebemos declarações contraditórias, somos submetidos a campanhas antivacina de quem deveria estar comprando mais doses, precisamos tentar organizar estatísticas e decretos que apontam para direções diferentes. Somos deliberadamente ensurdecidos.

Peço desculpas por esta crônica com cara de artigo de jornal. Ela revela o meu próprio excesso informacional. Enquanto o estado onde vivo avança para o colapso de todo o sistema de saúde, eu leio obsessivamente as notícias, os prognósticos e as análises dos especialistas. Tenho a esperança de, no meio do caos, encontrar o Wally. Me iludo com a ideia de que, se eu apenas me dedicar o suficiente, a resposta estará ali, bem debaixo do meu nariz e, depois de vê-la uma vez, nunca mais a perderei de vista. A verdade, porém, parece ser a de que não estou procurando por Wally, mas sou o próprio Wally: aquela figura desorientada que, apesar dos óculos enormes, parece nunca perceber que logo à sua esquerda há uma casa pegando fogo, um elefante prestes a esmagar uma pessoa, um fantasma aterrorizando crianças ou uma trilha de esquiadores acidentados. Eu olho, leio, presto atenção, ouço as sirenes de ambulâncias que me acordam de madrugada, mas não encontro sentido. Amanhã, os jornais trarão mais números impossíveis. Será mais um dia de surdez.

Julia Dantas

Nasceu em Porto Alegre (RS). É editora, tradutora e doutoranda em Escrita Criativa pela PUCRS. É autora de Ruína y leveza (Não Editora, 2015) e organizadora de Fake Fiction: contos sobre um Brasil onde tudo pode ser verdade (Dublinense, 2020).

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