🔓 Ler em casa

Não gostar de ler não é motivo de se gabar. E até quem não gosta sabe esconder um pouco esse seu atributo, comum demais para ser chamado de outra coisa
Ilustração: Carolina Vigna
09/03/2021

Vou me aventurar numa série de crônicas chamada LeituraBR. Ando pensando que o assunto é infinito, tão necessário quanto insolúvel, então pode dar o que conhecemos popularmente como “pano para manga”, numa metáfora têxtil que me arrebata todos os afetos.

Pois bem: é que não sou romancista, então não posso anunciar por aí que publicarei uma trilogia disto ou daquilo. Resta às cronistas invisíveis dizer que escreverão uma série e que o assunto será cuidadosamente dividido em partes, que tanto poderão ser lidas em sequência quanto isoladamente, provocando reflexões salpicadas ou de outro tipo, para os que preferem a coerência e o encadeamento.

Fato é que, por obrigação laboral, mas não sem prazer, andei às voltas com os resultados da mais recente edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, publicados no ano passado e sempre alarmantes, com ou sem imprensa para ajudar a atrapalhar. Venho acompanhando essa pesquisa há tempos, desde o início de sua série histórica. Sobre ela já li de tudo, até tese de doutorado. Sem desmerecer as críticas fundamentadas que ela recebe, vou preferir tratar de uns aspectos que iluminam minhas memórias e me provocam uma curiosidade quase infantil; vontade de devassar os lares e as cabeças alheias para saber por que, como, desde quando, onde as pessoas que leem… leem, e as pessoas que não leem… nos deixam tão incomodados.

No dia em que baixei um relatório resumido dos resultados da Retratos (vou chamá-la assim intimamente), senti provavelmente como o garimpeiro que acha sua pepita. Só que talvez ao contrário. Que valor tem isto, neste nosso país? Quem ama os livros jura que é como uma mina de ouro, mas quem não ama… discorda e nem sequer se dá o trabalho de argumentar. Interessantemente, não gostar de ler não é motivo de se gabar. E até quem não gosta sabe esconder um pouco esse seu atributo, comum demais para ser chamado de outra coisa. Anomalia é gostar, e gostar tanto que a leitura ganhe importância central entre as atividades que executamos em nossas atarefadas e exploradas horas de vigília.

O primeiro resultado a me cutucar foi que 82% das pessoas pesquisadas leem e preferem ler em casa. Esses 82% ganham força de generalidade porque há todo um tratamento estatístico dos dados, decorrentes de uma metodologia já desenhada para um alcance amplo de resultados que nos ajudem a repensar o Brasil.

Quando li esses 82% de compatriotas que leem no regaço de seus lares, tenham lá estes o valor de IPTU que for, logo saltei ao particular e tratei de me lembrar da família, dos amigos, dos colegas de escola, das famílias dessas pessoas todas e de seus hábitos geralmente distantes dos livros. Não serei injusta, é claro. Conheço e conheci gente muito afeita a estantes altas cheias de livros comprados, desses que são parte do nosso “intransferível patrimônio”, para lembrar um belo poema de Henriqueta Lisboa. No entanto, essas pessoas sempre me pareceram minorias silenciosas, em relação à ruidosa maioria de conhecidos e conhecidas que preferiam fazer mil outras coisas em troca de suas horas de vida.

Por que a maioria esmagadora das pessoas prefere ler em casa? Novamente pensando em minha intimidade, não há hoje espaço onde eu leia mais do que dentro de minha casa no Renascença. É só aqui que consigo me livrar das pessoas, dos comandos incessantes, do barulho de uma escola (não ensinam isso à gente na faculdade…), do burburinho torturante da rua e do trânsito, do zumbido apressado de tudo o que é sempre para já. Apenas em casa consigo separar umas horas, nem sempre diárias, é claro, para uma leitura de estudos ou de lazer, num ambiente mais ou menos calmo, retirado, pouco permeável, com menos chance de interrupções e onde eu possa encontrar uma posição para o corpo que lê.

Meus amigos admiravam minha alta capacidade de ler no ônibus, no avião ou dentro de quase qualquer coisa em movimento. Sempre perguntavam se eu não me enjoava, se não me sentia mal, se as vistas não se embaralhavam. Os livros foram e são, desde minha juventude, grandes companheiros nos deslocamentos e nas esperas. Eu simplesmente não saberia o que fazer em aeroportos áridos e em transportes públicos demorados se não pudesse sacar um livro da mochila. O automóvel é, sem dúvida, um redutor de leituras em minha vida (bom, embora não compense sofrer no busão de BH por isso). O tempo sempre me parece desperdiçado se eu não estiver ocupada com algo para ler. E não leio apenas enquanto, à espera, numa espécie de trânsito ou troca; leio quando só quero ler, quando a tarefa é ler, quando ler é o fim, não o meio, mas é sempre também o meio. A despeito desse porte irrestrito de livros e da possibilidade sempre procurada de lê-los, é em casa que a leitura acontece mais e melhor.

Com o passar dos anos, fui configurando os espaços da leitura dentro de casa, com direito a poltrona de braços altos e almofadas para as costas. Não dispenso, no entanto, as leituras na cama, no banheiro (embora sejam contraindicadas pelos proctologistas) e na sala. Para cada ambiente desses, um tipo de livro, o que termina por criar umas órbitas de leituras paralelas, com livros espalhados pela casa, cada qual com seu marcador e seu lápis 7B de sublinhar trechos marcantes. Ai de quem mexe!

Embora a Retratos não tenha me entrevistado, estou entre esses 82% de brasileiros e brasileiras que preferem ler em casa. Numa palafita ou numa mansão à filhote de bozo, numa rede ou numa poltrona chique, simplesmente creio que preferiria ler sob o telhado onde moro. Nenhum outro espaço me faz sentir tão entregue a uma leitura e a um livro. E não me refiro a uma entrega lassa, preguiçosa, mas àquela entrega dedicada e ativa dos que estudam, dos que procuram, dos que desejam. Isso, é claro, não descarta a delícia dos momentos de leitura descompromissada e morosa, com sonequinha no meio.

Sob meu telhado velho, me livro um pouco do mundo e de seus chamamentos inconvenientes, que me atropelam constantemente. Não vou, no entanto, provocar que se pense no alheamento, na leitura como fuga, coisa que ela pode ser, mas não só, e nem sempre, e quase nunca. Penso na leitura como uma espécie de preparação, recuo estratégico, pausa para respirar, mas também para buscar o conhecimento e o conselho que me preparará para a atuação, para o enfrentamento de questões como a própria leitura e sua escassez, suas dificuldades de alcance, de acesso; a leitura e a educação pública; a leitura e seus eternos devires; a leitura e seus potenciais que não deslancham; a leitura-promessa, que quero, profissionalmente, que seja, para muitos e muitas, uma realização concreta: leitura-em-ação.

Ana Elisa Ribeiro

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1975. É autora de livros de poesia, conto e crônica, infantis e juvenis, tendo estreado com um volume de poemas em 1997. Teve colunas fixas em algumas revistas desde 2003 e publicou quatro livros de crônicas reunidas: Chicletes, Lambidinha & outras crônicas (Escribas, 2012), Meus segredos com Capitu (Escribas, 2013, semifinalista Portugal Telecom), Doida pra escrever (Moinhos, 2021) e Nossa língua & outras encrencas (Parábola, 2023). É professora da rede federal de ensino e pesquisadora das mulheres na edição.

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