🔓 Jorge Amado e o tribunal das redes

Este texto é o meu testemunho da generosidade de um escritor fundamental para a nossa literatura
Zélia Gattai e Jorge Amado
01/12/2020

(01/12/20)

Em 1998, eu era um jovem muito tímido, mas ao mesmo tempo ousado. Comprei um exemplar do romance Capitães da areia a preço popular numa banca de revistas e caminhei até a rua Alagoinhas, 33. Subi as escadas com azulejos e arte de Carybé e toquei a campainha. Uma senhora atendeu. “Será que Sr. Jorge poderia assinar este livro?”, perguntei, estendendo o exemplar para que ela levasse, enquanto aguardava na porta. Ela me pediu um instante, retornou ao interior da casa para ver se Jorge Amado estava disponível. Pouco tempo depois, voltou: “Entre, venha comigo, dona Zélia quer lhe conhecer”.

Nessa hora o coração parecia querer saltar pela boca. Eu havia planejado conseguir um autógrafo no meu exemplar de páginas amarelas, não achava que conheceria o autor. Entrei na sala; Jorge Amado estava sentado numa poltrona e Zélia Gattai, de pé junto à mesa. Ela me convidou a sentar. Quem conheceu Zélia Gattai sabe que era uma mulher adorável, generosa, de sorriso largo e que emanava afeto e gentileza. Jorge estava quieto na poltrona, me cumprimentou. Eu não sabia, mas ele já convivia há alguns anos com uma grave depressão. Entreguei o livro, ele leu o título, pareceu aborrecido. Chamou Zélia para mostrar. O título estava grafado como Capitães “de” areia. Abriu o exemplar e o assinou. Seus dois cães da raça pug se sentaram no meu colo. Zélia me perguntou se eu já havia lido algum dos seus livros. Eu respondi que não. Ela foi até a estante, retirou um exemplar de Anarquistas, graças a Deus, o assinou e me deu.

Durante esse tempo, Zélia me fazia perguntas, enquanto Jorge observava. Ele chegou a cochilar; estávamos numa hora próxima ao almoço. Eu contei que escrevia, que gostaria de ser escritor. Ela me incentivou a escrever. Contou que publicou o primeiro livro com mais de 60 anos. “Leia muito. E escreva”, foi o que me disse. “Um dia você poderá publicar seu próprio livro.” Guardo essa recordação como um bom exemplo do que um escritor deveria ser: generoso e afetuoso com os que o admiram, com os que dispõem de parte do seu tempo para ler suas histórias. Deve, em contrapartida, dispor de um pequeno tempo para responder mensagens. Jorge e Zélia costumavam enviar cartões de Natal com votos de boas-novas para os leitores que lhes escreviam. Eu mesmo recebi um cartão, que guardo de maneira muito especial.

Anos depois, quando estava em Portugal para o lançamento de Torto arado, fui convidado pela Fundação José Saramago para uma visita à Casa dos Bicos, sua sede. Fui recebido por Ricardo Viel e Pilar del Río, e ela fez questão de me acompanhar pessoalmente na visita à exposição, mostrando-me muitas fotografias com Saramago na companhia de personalidades e em seu cotidiano. Fiquei muito impressionado com a gentileza do convite e a disposição da Pilar em me acompanhar durante todo o tempo. Contei que Torto arado de alguma forma era tributário de Levantado do chão. Ela fez questão de tirar uma fotografia comigo na parte da exposição referente ao livro. Depois ela me deu o último Caderno de Lanzarote, de Saramago. Na sua sala, conversamos sobre Saramago, García Márquez e Jorge Amado. Pilar disse que Saramago recebeu uma mensagem muito efusiva assinada pela família Amado, por ocasião de Prêmio Nobel. Mas que ela tinha dúvida se Jorge tinha de fato escrito a carta. Sabia que ele estava imerso em um grave quadro depressivo, além da idade avançada. Imediatamente recordei que o exemplar de Capitães da areia que comprei veio acompanhado de um exemplar do livro A jangada de pedra, para celebrar o Nobel de Saramago, concedido um mês antes daquela visita aos Amado em 1998, e narrei o meu encontro com Jorge Amado. Pilar me perguntou se ele estava consciente e lúcido. Eu disse que sim e que inclusive Jorge havia ficado aborrecido com a grafia errada do título. Ela me disse então que ali se encerrava uma dúvida que a acompanhou por 20 anos.

Recordei de tudo isso porque recentemente vi circular nas redes sociais o “cancelamento” do escritor. Recuperaram uma notícia de jornal da década de 1960, sem qualquer comprovação – como se as fake news tivessem surgido apenas neste momento da nossa história –, dizendo que Jorge Amado havia barrado a entrada de Carolina Maria de Jesus em sua casa. Que ele tinha inveja da vendagem que a autora atingiu com seu livro Quarto de despejo. Acompanhando o compartilhamento, os mais tristes insultos: “Amado pilantra”, “Racista” etc.

Vivemos neste tempo, quando qualquer notícia sem comprovação se torna evidência para um julgamento impiedoso dos tribunais das redes. Não por acaso, sabemos de linchamentos reais motivados por boatos espalhados na internet. Se esquecem que Jorge Amado foi deputado federal pelo Partido Comunista Brasileiro por dois anos e deixou como parte do seu legado a emenda 3.218 à Constituição Brasileira promulgada em 1946, lei que tratava do livre exercício de crença religiosa. Ele enfrentou resistência no seu próprio partido. Se esquecem também que a intenção principal de Amado com a lei era acabar com a perseguição do Estado sofrida pelas religiões de matrizes africanas. Nas comunidades de terreiro em Salvador, Jorge Amado era obá muito querido pelo povo de santo e foi grande amigo de muitas yalorixás que fazem parte da história da cidade. Se esquecem que Jorge Amado contribuiu para colocar em evidência o protagonismo negro na nossa literatura, escrevendo sobre homens e mulheres fortes e divulgando a nossa cultura e diversidade mundo afora. Toda essa celeuma apequena também outra grande autora, a Carolina Maria de Jesus, como se sua obra dependesse da aceitação de outros autores para ser considerada relevante.

Este texto é o meu testemunho da generosidade de um escritor fundamental para a nossa literatura. Reverencio tanto Jorge Amado quanto Carolina Maria de Jesus e a literatura só tem a perder com o tribunal das redes.

Itamar Vieira Junior

Nasceu em Salvador (BA), em 1979. É escritor, geógrafo e doutor em estudos étnicos e africanos pela Universidade Federal da Bahia. Publicou os livros de contos Dias (2012) e A oração do carrasco (2017) e o romance Torto arado (2019), vencedor do Prêmio Leya.

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