šŸ”“ InĆŗteis, uni-vos!

Ɖ nesse momento, sem a preocupação do sucesso, da aceitação, da aprovação ou do retorno (financeiro, afetivo, tanto faz), que podemos ser nós mesmos
Quint Buchholz / reprodução
03/12/2020

(03/12/20)

Tenho uma teoria de que nos definimos pelas coisas inúteis que fazemos. Nada desse negócio de profissão, por exemplo. Ou gênero, ou função familiar. Essas, mesmo quando escolhas, são responsabilidades que assumimos e, a partir desse momento, se ressignificam.

Nós somos aquilo de mais inútil, idiota, sem sentido e sem propósito em nossas vidas. Eu, por exemplo, tenho como principais atividades inúteis a costura e as plantas. Faço ambas muito mal. Além disso, não servem para nada. Não ganho dinheiro com elas, não as publico em nenhum lugar, não são projetos pessoais, nada. São o mais absoluto nada.

E é nesse momento, sem a preocupação do sucesso, da aceitação, da aprovação ou do retorno (financeiro, afetivo, tanto faz), que podemos ser nós mesmos.

Tudo que costuro fica torto. Não aquele torto imperceptível que só o olho da costureira percebe. Não, não. Torto de verdade. Torto como a vida.

As plantas que gosto de ter não são perenes. São sempre temperos como coentro, nirÔ ou pimentas. O que, claro, pode explicar a vida curta delas. Ou, por outro lado, se faço essa escolha para autojustificar a necessidade de novos plantios, cabe ao meu terapeuta responder.

De onde concluo que eu sou, no nƭvel mais bƔsico do ser humano, incompetente.

O que me lembro do poema do MƔrio de SƔ-Carneiro:

Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermƩdio:
Pilar da ponte de tƩdio
Que vai de mim para o Outro.

Não somos uma coisa só e estabelecemos nossa identidade na interface com o outro. Isso é puro Freud. E é lindo.

Essa interface com o outro, muitas vezes, passa pela categorização. ā€œO que vocĆŖ faz?ā€ Ć© uma pergunta que espera como resposta algo que garanta o seu sustento. As pessoas normalmente nĆ£o esperam que vocĆŖ diga ā€œescuto mĆŗsicaā€. O fazer Ć© associado ao dinheiro, nĆ£o ao prazer. E, claro, menos ainda ao inĆŗtil.

A neurociĆŖncia fala sobre a necessidade do sono e do ócio. O cĆ©rebro precisa esquecer para poder lembrar. Essas coisas que vocĆŖ jĆ” viu grudado em memes de autoajuda e que aquela sua tia conectada manda no grupo da famĆ­lia. Isso, entretanto, nĆ£o me interessa. Falo aqui de atividades – e, portanto, nĆ£o de descanso – que nĆ£o sirvam para absolutamente nada.

HĆ” um quĆŖ de revolucionĆ”rio nisso. O capitalismo faz com que todo o nosso tempo ā€œsirvaā€ para alguma coisa. Ou estamos produzindo algo para alguĆ©m, mesmo que esse alguĆ©m seja vocĆŖ mesmo, ou estamos consumindo algo. EntĆ£o, o tempo que vocĆŖ gasta na Netflix ou no Youtube nĆ£o Ć© seu, pertence Ć  indĆŗstria cultural e faz parte da mĆ”quina capitalista. JĆ” o tempo que vocĆŖ passa olhando para o teto, sem produzir ou consumir, Ć© só seu. Olhar para o teto Ć© libertador.

Seguindo o mesmo raciocínio, de uma forma um pouco mais branda, fazer algo inútil é, também, se retirar do sistema. O leitor dirÔ, com razão, que eu comprei o vasinho ou a mÔquina de costura e que, portanto, ainda estou inserida no contexto capitalista. Em minha defesa, respondo que, ao fazer algo essencialmente inútil, quebro o ciclo, quebro a corrente. Sou, em minha inutilidade, rebelde.

Agora você jÔ sabe. Próxima vez que alguém te perguntar para que serve algo que você quer fazer só porque sim, responda: para mudar o mundo!

Carolina Vigna

Ɖ escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho