🔓 Futebol e literatura

Introdução longa, porém ilustrativa, sobre a presença do esporte bretão em contos e romances brasileiros, para saudar novo livro de José Trajano
Ilustração: FP Rodrigues
09/07/2021

Atlético (a) leitor (a), parece não haver dúvida de que o futebol chegou ao Brasil em 1894 na bagagem do filho de ingleses Charles Miller, quando este voltou de uma temporada de estudos na Grã-Bretanha trazendo duas bolas para a prática do novo esporte. A primeira partida teria ocorrido no outono de 1895, entre funcionários da Companhia de Gás e da São Paulo Railway, com vitória destes por 4 a 2. De lá para cá, é o que se sabe: o esporte popularizou-se e o país detém o invejável título de pentacampeão mundial de futebol (1958, 1962, 1970, 1994 e 2002). É praticamente impossível viver no Brasil sem se deixar contaminar pela interminável discussão sobre o assunto, que hoje interessa, indistintamente, a homens e mulheres. No entanto, os escritores brasileiros sempre guardaram distância do tema, rejeitando-o, já nem digo como motivo principal, mas até mesmo como referência secundária. A verdade é que os personagens da nossa prosa de ficção, de maneira geral, transitam num nível da sociedade em que o futebol é ignorado como manifestação coletiva.

Curiosamente, o futebol despertou, em seus primórdios, a atenção dos intelectuais. Na década de 1910, quando ainda estava vinculado à aura de esporte praticado por uma elite branca e aristocrática, conquistava as páginas das crônicas mundanas e tinha defensores ardorosos como João do Rio, encantado com o glamour da arquibancada, “formidável corbelha de belezas vivas”, e Coelho Neto, cujo filho, conhecido como “Preguinho”, foi um dos maiores artilheiros da história do Fluminense e participou da seleção brasileira que disputou a primeira Copa do Mundo, no Uruguai, em 1930. E também contava com adversários furibundos, como Lima Barreto. O autor de Triste fim de Policarpo Quaresma encarava a questão pelo viés político: para ele, maximalista e pacifista, o futebol era uma “escola de violência e brutalidade”, e por isso deveria ser combatido “de todos os modos e feitios”: “Não posso admitir nem conceber que o fim da civilização seja a guerra. Se assim fosse, ela não teria significação. O fim da civilização é a paz, a concórdia, a harmonia entre os homens; e é para isso que os grandes corações de sábios, de santos, de artistas têm trabalhado”.

Entretanto, o futebol alcançou os mais longínquos rincões da Terra, tornando-se o esporte mais popular do mundo, a ponto de a Fifa, sua entidade máxima, contar hoje com mais países-membros (211) que a própria ONU (193). Além disso, deixou as colunas sociais e ganhou espaço próprio nos jornais, interessando a uma variedade imensa de cronistas, desde ocasionais, como um Carlos Drummond de Andrade ou um José Lins do Rego, até os profissionais, como Mário Filho, João Saldanha, Roberto Drummond e, o maior de todos, Nelson Rodrigues. Mas o entusiasmo dos cronistas nunca contagiou os romancistas e contistas. O futebol permaneceu, quase sempre, escorraçado, no lado de fora do edifício da prosa de ficção.

A relação inicial, entretanto, parecia promissora. Em 1927, Alcântara Machado publicou Brás, Bexiga e Barra Funda, uma coletânea de contos que incluía a pequena obra-prima que é Corinthians 2 x 1 Palestra. Já no ano seguinte, o esporte faz pequena aparição em Macunaíma, de Mário de Andrade. Depois, só de tempos em tempos é evocado em romances: Água-Mãe, de 1941, de José Lins do Rego; O sol escuro, de 1966, de Macedo Miranda; Crônica do Valente Parintins, de 1976, de Ewelson Soares Pinto; À saída do primeiro tempo, de 1978, de Renato Pompeu; Segunda divisão, de 2005, de Clara Arreguy; O segundo tempo, de 2006, de Michel Laub; O drible, de 2013, de Sergio Rodrigues. Além disso, dois livros de contos foram totalmente dedicados ao assunto: Maracanã adeus, de 1980, de Edilberto Coutinho; e Contos de futebol, de 1997, de Aldir Garcia Schlee, responsável, aliás, pelo desenho do uniforme canarinho, ao vencer um concurso nacional, depois do fracasso do Brasil na Copa de 1950. Lugar à parte merece Sergio Sant’Anna, que ao tema dedicou algumas das melhores páginas da literatura brasileira, em contos como Na saída do primeiro tempo (de Notas de Manfredo Rangel, repórter, 1973), Na boca do túnel (de O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro, 1982), Páginas sem glória (do livro homônimo, 2012) e O torcedor e a bailarina (de O homem-mulher, 2014).

Coube a Flávio Moreira da Costa a iniciativa de organizar a primeira antologia de contos sobre futebol no Brasil. Embora a ideia tenha nascido ainda “em 1977 ou 1978”, o livro só saiu mesmo em 1986, com o título de Onze em campo e contava, no elenco, além do próprio organizador, com Edilberto Coutinho, Ricardo Ramos, Rubem Fonseca, João Antônio, Carlos Eduardo Novaes, Sergio Sant’Anna, Luiz Vilela e Duílio Gomes, e, antecipando uma tendência, duas mulheres, Anna Maria Martins e Edla van Steen. Reeditada doze anos depois, com o título de Onze em campo e um banco de primeira, acrescentava mais uma mulher, Hilda Hilst, e Orígenes Lessa, Marcos Rey, João Ubaldo Ribeiro e Alcântara Machado. Em 2006, aproveitando a realização da Copa do Mundo na Alemanha, a antologia ganhou uma reedição com o título de 22 contistas em campo, sendo adicionados os nomes de Aldyr Schlee, Rachel de Queiroz, Plínio Marcos, Ignácio de Loyola Brandão, Moacyr Scliar, Flávio José Cardozo, Sergio Faraco e Flávio Carneiro (convocados ainda os uruguaios Mario Benedetti e Horácio Quiroga e o inglês Patrick Kennedy).

Naquele mesmo ano, e também aproveitando o embalo da Copa do Mundo, outras três antologias sobre o tema foram publicadas. Cyro de Mattos organizou Contos brasileiros de futebol, com 19 autores: Aldyr Garcia Schlee, Duílio Gomes, Edilberto Coutinho, Sérgio Sant’Anna, Edson Gabriel Garcia, Luís Henrique, Dias da Costa, José Cruz Medeiros, Salim Miguel, Caio Porfírio Carneiro, Hélio Pólvora, Renard Perez, Aércio Consolin, Moacir Japiassu, Deonísio da Silva, Lourenço Cazarré, Antônio Barreto, Suzana Montoro e o próprio organizador. Já 11 histórias de futebol, com prefácio de Juca Kfouri, reuniu histórias inéditas de João Antônio, Lourenço Cazarré, Antonio Carlos Olivieri, Ricardo Soares, Wladimir Catanzaro, Wladyr Náder, Luiz Galdino, Domingos Pellegrini, José Roberto Torero, Miguel Sanches Neto e Daniel Piza. E, organizada por Eduardo Coelho, Donos da bola reuniu textos diversos, entre crônicas, contos, poemas e letras de música.

Finalmente, em 2013, véspera da fatídica Copa do Mundo realizada no Brasil, eu mesmo organizei uma antologia, curiosamente primeiro publicada na Alemanha, aproveitando o fato de sermos, naquele ano, o país homenageado na Feira de Frankfurt, e depois no Brasil. O livro, intitulado Entre as quatro linhas, trazia textos inéditos de Mário Araújo, Fernando Bonassi, Ronaldo Correia de Brito, Eliane Brum, Flávio Carneiro, André de Leones, Tatiana Salem Levy, Adriana Lisboa, Ana Paula Maia, Tércia Montenegro, Marcelo Moutinho, Rogério Pereira, Carola Saavedra, André Sant’Anna e Cristovão Tezza.

Incansável leitor (a), todo esse relato acima me veio a propósito de saudar o lançamento de Aqueles olhos verdes, do conhecidíssimo jornalista José Trajano, que, desde 2015, quando lançou Tijucamérica, passando por Os Beneditinos, em 2018, vem dando espaço para o futebol em seus romances. Com a segurança digna dos mestres, Trajano, nesta mais recente narrativa, traça um panorama político e social do Brasil, explorando um dos momentos mais importantes da formação do país, o período que vai da instauração da ditadura Vargas até a véspera do golpe militar de 1964. Trajano evoca essa época conturbada com o traquejo e a malícia dos antigos locutores de rádio — que, na impossibilidade de mostrar o que acontece em campo, recria, com palavras, imagens que se tornam realidade.

Luz na escuridão
Miguel Sanches Neto, romancista, contista, ensaísta:

“Entre os primeiros insights de um livro e a sua publicação, podem se passar anos. Por volta de 2014, comecei a sonhar com algo lido em algum lugar. Um espírito reencarnou para revisitar a casa onde vivera. Daí em diante, várias coisas foram se encaixando a este núcleo narrativo. Entre julho de 2015 e julho de 2016, morei em Portugal, mantendo anotações em meus diários sobre o que pretendia escrever. Neste período, colecionei casas-museus de escritores. A que mais me impressionou foi um apartamento na rua da Esperança, em Lisboa, onde José Saramago viveu com sua segunda mulher, Isabel da Nóbrega, e onde escreveu seus primeiros grandes romances. De volta ao Brasil, continuei agregando material a esta base. Mas só comecei a escrever o livro quando li a história de um jovem que abandona um emprego medíocre para ser um mestre da literatura. Havia encontrado um narrador, um rapaz inteligente, malandro e mitomaníaco, que vai a Portugal em busca de fama. Assim nasceu O último endereço de Eça de Queirós, contratado pela Companhia das Letras para 2022”.

Parachoque de caminhão
“Estado totalitário é um Estado em que tudo o que não é proibido é obrigatório.”
Curzio Malaparte (1898-1957)

Antologia pessoal da poesia brasileira
João Cabral de Melo Neto
(Recife, PE, 1920 – Rio de Janeiro, RJ, 1999)

O torcedor do América F. C.

O desábito de vencer
não cria o calo da vitória;
não dá à vitória o fio cego
nem lhe cansa as molas nervosas.
Guarda-a sem mofo: coisa fresca,
pele sensível, núbil, nova,
ácida à língua qual cajá,
salto do sol no Cais da Aurora.

(Museu de tudo, 1975)

Luiz Ruffato

Publicou diversos livros, entre eles Inferno provisório, De mim já nem se lembra, Flores artificiais, Estive em Lisboa e lembrei de você, Eles eram muitos cavalos, A cidade dorme e O verão tardio, todos lançados pela Companhia das Letras. Suas obras ganharam os prêmios APCA, Jabuti, Machado de Assis e Casa de las Américas, e foram publicadas em quinze países. Em 2016, foi agraciado com o prêmio Hermann Hesse, na Alemanha. O antigo futuro é o seu mais recente romance. Atualmente, vive em Cataguases (MG).

Rascunho