🔓 Dengo e dendê

Diante da bestial figura do deputado brucutu, chega-se à conclusão de que o Brasil ainda tem algum dendê, mas talvez tenha perdido o dengo
Ilustração: Carolina Vigna
24/02/2021

Segundo a premissa de uma amiga versada nas coisas do amor, as pessoas se dividem entre as que têm e as que não têm dendê. A classificação não se relaciona a questões estéticas, nem ao conceito de beleza repisado pelo senso comum. Longe disso. “Ter dendê”, conforme essa acepção, significaria encarnar no dia a dia algumas das características do azeite típico da gastronomia baiana. A saber: consistência, intensidade e uma doçura não raro abrasiva.

Haveria, portanto, homens e mulheres que a maioria das pessoas certamente chamaria de lindos, mas cujo índice de dendê é zero. E vice-versa. Independentemente de gênero, raça ou orientação sexual.

Lembrei do axioma proposto pela minha amiga enquanto ouvia Dorival Caymmi no som do carro na Quarta-Feira de Cinzas. Após quatro dias de um carnaval que renegou o devido nome, a viagem de retorno da serra fluminense se deu sob a voz grave do cantor. Suas praias e lagoas, seus pescadores, uma receita de vatapá, as redes cheias de sargaço. Caymmi, diga-se, tinha dendê.

A escolha em meio às tantas opções do Spotify se relacionava com a leitura de poucas horas antes: um livro do ensaísta Francisco Bosco sobre a obra do artista. No texto, Bosco distingue o “dengo” – termo presente no título de uma das músicas – como conceito-chave do cancioneiro de Caymmi. Uma graça sutil, brejeira, que se exprimiria no remelexo, no sorriso, no jeito de falar.

“Não sei de palavra tão bonita quanto ‘dengo’”, comentaria o próprio Caymmi quando indagado sobre a tal composição. “O sol do Nordeste, aquele calor das tardes pedindo rede e água de coco, pedindo cafuné e dando ao corpo certa moleza gostosa, produz o dengo, que por vezes está apenas no quebranto de um olhar, às vezes na modulação da voz terna”, explicou ele no depoimento à filha Stella.

As curvas da BR-040 pareciam mais sinuosas enquanto ouvíamos as melodias e os versos de Acalanto, Na Baixa do Sapateiro, É doce morrer no mar. Por alguns minutos, esquecemos a política genocida do governo, o vexame de um Congresso sempre à venda, os fura-filas da vacina, os cancelamentos do progressismo lacrador. Mas logo chegamos e veio a notícia do deputado preso após defender o AI-5.

O presente se impunha, sem nuances. Na cena flagrada pela TV, o cidadão detido recusa-se peremptoriamente a pôr a máscara durante o exame de corpo de delito no Instituto Médico Legal (IML). Invoca as prerrogativas de policial, de parlamentar, numa atualização da lógica da “carteirada” tão bem descrita pelo antropólogo Roberto DaMatta. Alertado por uma agente de que o uso é obrigatório, passa do gesto antirrepublicano à franca misoginia. “E se eu não quiser botar? Se a senhora falar mais uma vez eu não boto (…)”, ele berra, apontando o dedo, de forma intimidatória, na direção dela. “Folgada pra caralho!”, ainda diz, antes de enfim colocar a proteção.

O João Valentão, da canção de Caymmi, é brigão e a todos intimida. No entanto, sucumbe quando o sol quebra, o ronco das ondas se faz ouvir e a noite é de lua. O cansaço “da lida da vida” o obriga a se deitar na areia da praia, impõe uma pausa serena. Com a carreira repleta de sanções disciplinares na Polícia Militar e um registro de prisão por suspeita de venda ilegal de anabolizantes, o deputado é valentão em tempo integral. Chegou à Câmara com 31.789 votos após quebrar uma placa com o nome da vereadora Marielle Franco, que havia sido brutalmente assassinada poucos meses antes. O episódio no IML, portanto, não chega a surpreender. Mas serve de emblema, mais um, da barbárie na qual mergulhamos. E nos permite inferir: se ainda tem algum dendê, o dengo o Brasil já perdeu.

Marcelo Moutinho

É autor dos livros  A lua na caixa d’água (Prêmio Jabuti 2022), A palavra ausente (2022), Rua de dentro (2020), Ferrugem (Prêmio da Biblioteca Nacional 2017), Na dobra do dia (2015), e dos infantis Mila, a gata preta (2022) e A menina que perdeu as cores (2013), entre outros.

Rascunho