🔓 Dasein, bah!

A poluição sonora é implacável, não respeita os reclusos, os enfermos, os quarentenados, os estudantes, os leitores, os quietos ou os gatos
Ilustração: montagem/Thapcom
15/04/2021

Do lado de fora, buzinas. Não acompanho mais os motivos. Cansei. Talvez buzinar não resolva muito, considerando que nem 42 tentativas de matar Hitler mudaram algo (ele se suicidou). Panelaços e buzinaços não foram registrados. E com isso, não estou aqui recomendando assassinato, estou apenas questionando a eficácia desse barulho insuportável na minha janela.

Não tenho respostas. Não sei o que ocasionaria uma mudança.

Entendo que às vezes a raiva é tanta que queremos gritar, buzinar, fazer barulho. Mesmo entendendo, mesmo também com sangue nos olhos, adoraria silêncio.

Os ruídos que me ocupam por dentro são suficientes.

Ligo uma música na esperança de que funcione como uma antimatéria, anulando o que me irrita. Não funciona.

Quando eu era adolescente tinha uma propaganda gringa de um aerossol anti-odores em que uma menininha reclamava que a casa cheirava a peixe. Aí a mulher-mãe-dona-de-casa passava um aerossol no ambiente e a pestinha imediatamente reclamava “agora a casa cheira a peixe e rosas”. Sempre que eu tento anular uma coisa com outra, lembro dessa propaganda. O poder do marketing, minha gente.

As buzinas agora receberam o acompanhamento desafinado de fooora.

Preferi morrer sufocada de janelas fechadas do que surda de janelas abertas. Temos opção. É sempre uma escolha.

A poluição sonora, comparada à visual, é, para mim, a pior porque não conseguimos fugir dela. O som nos invade. Não conseguimos selecionar em qual som focar, mas somos capazes de nos afundar em um livro ou qualquer outra coisa e não vermos mais nada. O áudio é implacável, não respeita os reclusos, os enfermos, os quarentenados, os estudantes, os leitores, os quietos ou os gatos. Não respeita nada, nem ninguém.

Uma criança pequena grita e um cachorro late. Amigos, se isso adiantasse, eu também estaria gritando ou latindo ou ambos, acreditem.

Desisto temporariamente de escrever, começo a preparar o chimarrão na esperança de que os visigodos já tenham ido embora quando ficar pronto.

Tenho dois métodos de ingestão de cafeína. Um rápido, prêt-à-porter, aperta um botão e pronto, café. E o outro, artesanal, pensado, sentido, costurado à mão, que vem dentro de uma cuia. Filha de gaúcho e residente em São Paulo, habito os dois com igual conforto.

Tomar chimarrão não é apenas uma questão da química da trimetilxantina. Tomar chimarrão é toda uma relação com o tempo, com o estar no mundo.

Se Heidegger fosse gaúcho, certamente o Dasein seria percebido de uma maneira muito diferente e o estar-no-mundo viria acompanhado de um bah, tchê.

As buzinas se foram. Poucas coisas no mundo não se resolvem preparando um chima.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho