🔓 Daqui nem o papa me tira!

Uma mulher se nega a usar máscara na viagem de metrô e a criatividade ajuda a resolver o problema
Ilustração: FP Rodrigues
04/10/2022

A criatividade é uma das qualidades mais notáveis que se pode ter. De forma direta ou indireta, tudo passa por ela, e sua contribuição no sucesso do homo sapiens e de seus ancestrais na seleção natural pode ter sido crucial. A dependência e o tempo de amadurecimento de um bebê e outras desvantagens competitivas no reino animal certamente foram compensadas pela capacidade de raciocínio e pela imaginação criativa, levando a responsabilidade de cuidados com o outro à formação de grupos de cumplicidade social. A criatividade é, portanto, uma riqueza que devemos estimular, valorizar e desenvolver sempre que possível. E notem que estamos falando da engenhosidade inerente às pessoas comuns, para além dos artistas e daqueles que fazem uso do recurso de maneira sistemática ou até profissional. 

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— Minha senhora, quero pedir que a senhora, por favor, coloque a máscara.

— Tá me mandando, é?

— Não é uma questão de mandar, é uma regra. Está escrito naquele adesivo, não percebeu?

— Mas já vi muita gente sem máscara andando por aí, numa boa.

— Sim, minha senhora, mas aqui estamos em ambiente fechado; é colocar a sua e a nossa vida em risco, entende?

— Em risco o quê!? Isso é tudo lorota.

Um terceiro participante entra na conversa:

— Ô, dona Maria, precisa colocar a máscara. É regra!

— Vou colocar coisa nenhuma, e ninguém vai me obrigar.

Nesse ponto, o vagão inteiro se mostra incomodado e os comentários brotam instantaneamente: “tem que pôr sem discutir”, “o negócio é chamar o segurança”, “quem essa dona acha que é?”.

— Não vou pôr e pronto. E quero ver quem vai fazer eu pôr.

— Então a senhora desce na próxima estação porque não somos obrigados a colocar nossas vidas em risco!

— Vou sair nada, e ninguém vai me tirar daqui!

— Ah, vai sair, sim, nem que eu tenha que tirá-la à força!

— Você? Ora quem fala! Precisa comer muito feijão, minha filha!

Os rumores continuam: “tem que sair, dona Maria!”, “véia egoísta filha da puta!”, “não pode ficar, não!”.

— Ah, não vai sair? Vai sair, sim.

— Eu hein! Daqui nem o papa me tira! — Se mostrando irritada, coloca a bolsa no banco vazio ao lado e cruza os braços em sinal de resistência.

O trem para na estação, as portas se abrem.

— Vai ter que sair, melhor ir levantando!

— Quem é que vai me tirar?

— Vai sair e é agora!

— Vou sair nada.

“Vai sair”, “não vou sair”, “vai sair, sim”, “não saio, não” e repentinamente uma bolsa voa para fora do trem, arremessada ao lado oposto da plataforma três segundos antes do aviso sonoro de fechamento automático. Numa reação instantânea, a mulher que resistia em colocar a máscara, na ansiedade de recuperar a própria bolsa, salta ligeira para fora, as portas se fecham e o vagão inteiro explode em zombarias.

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Agora me diz: a criatividade nĂŁo Ă© uma preciosidade?

Antonio Cestaro

É empresário do setor editorial e diretor do selo de literatura Tordesilhas. Estreou como escritor em 2012, com o livro de crônicas Uma porta para um quarto escuro. Em 2017, foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura com o romance Arco de virar réu.

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