(30/10/20)
Lembro perfeitamente a primeira vez que ouvi o termo “babaca”. Em 1973, na minha classe do Colégio Cataguases, havia dois irmãos — um da minha idade, o outro mais velho, repetente —, recém-chegados do Rio de Janeiro. Exibindo modos extravagantes e linguagem diferente, fascinavam os colegas, atraindo a atenção. Eu os invejava, porque eram em tudo o oposto a mim: ricos, extrovertidos, carismáticos. Eu ficava à parte, ouvindo-os, quando um bolo se formava à volta deles no intervalo das aulas. Numa dessas vezes, o mais velho disse, “Aquele sujeito é um babaca!”. Para mim, a frase soou como o barulho da caverna do Ali Babá se abrindo quando ele pronunciava o “abre-te, Sésamo!”.
Eu nunca tinha escutado a palavra babaca, ou melhor, para mim babaca era um termo chulo, que significava — vou colocar asteriscos, leitor/leitora, para não causar constrangimento, mas você sabe do que se trata —, b****a (se ainda assim você se sentir encabulado/a, leia pudenda mulieris). O que me causou espanto não foi somente meu colega ter usado a palavra, mas principalmente o fato de ela ter adquirido outro sentido. (Parêntese pretensamente inteligente: babaca vem do banto, segundo alguns, do tupi, segundo outros, mas sempre denotando partes pudendas femininas). Então, pouco a pouco, compreendi o significado novo de babaca, pessoa tola, estúpida, desagradável.
Toda essa digressĂŁo me vem a propĂłsito de uma ideia delirante: acho que o comportamento das pessoas tambĂ©m pode ser contagioso. Quando, em 1973, ouvi a palavra babaca, já havia, claro, espĂ©cimes espalhados por aĂ, mas talvez, assintomáticos, se confundissem na multidĂŁo. Mas, como doença insidiosa, espalhava-se em silĂŞncio e de forma incontrolável, atĂ© nos darmos conta, tarde demais, que estávamos diante de uma verdadeira epidemia… Hoje, ao que tudo parece, os babacas estĂŁo em toda parte, e, multiplicando-se a uma velocidade evangĂ©lica, logo se tornarĂŁo ampla maioria nesse paĂs das maravilhas — em alguns setores, já o sĂŁo, como diria o meu amigo, Professor Pasquale.
Luz na escuridĂŁo
TĂ©rcia Montenegro, romancista, contista, ensaĂsta, colega colunista deste Rascunho: “Estou escrevendo um novo romance, mas ele se encontra naquele estado meio nebuloso, quando vemos silhuetas, mas nĂŁo podemos ainda distinguir nada ao certo. O que pretendo com esse novo livro Ă© me debruçar sobre algumas histĂłrias de famĂlia, com as quais convivi na infância e adolescĂŞncia, mas que ainda nĂŁo sei como abordar da forma adequada. O livro ainda tem a ver com artes, que Ă© uma tĂ´nica nos meus romances, e com discussões filosĂłficas sobre a existĂŞncia, sobre o tempo… Talvez com alguma personagem ligada ao teatro, ao circo… Mas ainda me encontro num momento anterior Ă escrita, num estado de total disponibilidade”.
Parachoque de caminhĂŁo
“Quem compreende, não odeia.”
Selma Lagerlöf (1858-1940)
Antologia pessoal da poesia brasileira
Cruz e Sousa
(FlorianĂłpolis, SC, 1861, AntĂ´nio Carlos, MG, 1898)
Litania dos pobres
Os miseráveis, os rotos
SĂŁo as flores dos esgotos.
São espectros implacáveis
Os rotos, os miseráveis.
SĂŁo prantos negros de furnas
Caladas, mudas, soturnas.
São os grandes visionários
Dos abismos tumultuários.
As sombras das sombras mortas,
Cegos a tatear nas portas.
Procurando o céu, aflitos
E varando o céu de gritos.
FarĂłis Ă noite apagados
Por ventos desesperados.
Inúteis, cansados braços
Pedindo amor aos espaços.
MĂŁos inquietas, estendidas
Ao vĂŁo deserto das vidas.
Figuras que o Santo OfĂcio
Condena a feroz suplĂcio.
Arcas soltas ao nevoento
DilĂşvio do esquecimento.
Perdidas na correnteza
Das culpas da natureza.
Ó pobres! Soluços feitos
Dos pecados imperfeitos!
Arrancadas amarguras
Do fundo das sepulturas.
Imagens dos deletérios
Imponderáveis mistérios.
Bandeiras rotas, sem nome,
Das barricadas da fome.
Bandeiras estraçalhadas
Das sangrentas barricadas.
Fantasmas vĂŁos, sibilinos
Da caverna dos destinos!
Ă“ pobres! O vosso bando
É tremendo, é formidando!
Ele já marcha crescendo,
O vosso bando tremendo…
Ele marcha por colinas,
Por montes e por campinas.
Nos areais e nas serras
Em hostes como as de guerras.
Cerradas legiões estranhas
A subir, descer montanhas.
Como avalanches terrĂveis
Enchendo plagas incrĂveis.
Atravessa já os mares,
Com aspectos singulares.
Perde-se além nas distâncias
A caravana das ânsias.
Perde-se além na poeira,
Das esferas na cegueira.
Vai enchendo o estranho mundo
Com o seu soluçar profundo.
Como torres formidandas
De torturas miserandas.
E de tal forma no imenso
Mundo ele se torna denso.
E de tal forma se arrasta
Por toda a regiĂŁo mais vasta.
E de tal forma um encanto
Secreto vos veste tanto.
E de tal forma já cresce
O bando, que em vĂłs parece,
Ă“ pobres de ocultas chagas
Lá das longĂnquas plagas!
Parece que em vós há sonho
E o vosso bando Ă© risonho.
Que através das rotas vestes
Trazeis delĂcias celestes.
Que as vossas bocas, de um vinho
Prelibam todo o carinho…
Que os vossos olhos sombrios
Trazem raros amavios.
Que as vossas almas trevosas
VĂŞm cheias de odor das rosas.
De torpores, de indolĂŞncias
E graças e quint’essências.
Que já livres de martĂrios
VĂŞm festonadas de lĂrios.
VĂŞm nimbadas de magia,
De morna melancolia !
Que essas flageladas almas
Reverdecem como palmas.
Balanceadas no letargo
Dos sopros que vĂŞm do largo…
Radiantes de ilusionismos,
Segredos, orientalismos.
Que como em águas de lagos
Boiam nelas cisnes vagos…
Que essas cabeças errantes
Trazem louros verdejantes.
E a languidez fugitiva
De alguma esperança viva.
Que trazeis magos aspeitos
E o vosso bando Ă© de eleitos.
Que vestes a pompa ardente
Do velho sonho dolente.
Que por entre os estertores
Sois uns belos sonhadores.
(FarĂłis, 1900)