🔓 A transversal do tempo

Haverá uma dimensão paralela, uma cidade perdida, um reino do faz-de-conta, onde o que quase aconteceu possa finalmente existir em paz
Ilustração: Carolina Vigna
03/05/2021

Não é a primeira vez que insisto sobre isso, mas a pergunta, um tanto metafísica, confesso, ainda me inquieta. Para onde vão as coisas que poderiam ter sido, mas não foram? Haverá uma dimensão paralela, uma cidade perdida, um reino do faz-de-conta ou um lugar assim, onde o que quase aconteceu possa finalmente existir em paz, longe da frieza dos historiadores e das estatísticas?

Talvez por conta do ofício de cronista, imagino que exista uma esquina do universo, uma transversal do tempo, onde Deus guarda – talvez apenas para deleite particular – os fatos que estiveram a um passo de existir no mundo concreto, e que por um capricho qualquer não vingaram. Lá devem repousar as glórias que teriam chegado às páginas dos jornais e aos livros de história, registradas para sempre com cores de verdade – e não com as tintas da nossa imaginação –, não fosse por uma palavra, uma singela condicional, que esconde sua força descomunal por trás de duas letrinhas: se. Os mais antigos diziam que se ‘se’ jogasse, ‘se’ seria artilheiro. É uma frase divertida – até porque começa justamente com a tal condicional –, mas discordo dela. Discordo e digo mais: ‘se’ joga sim, e joga uma barbaridade. Ao menos nas minhas crônicas, sempre haverá lugar para um ‘se’ artilheiro, para um ‘se’ campeão. Nos meus textos, o herói da semana sempre poderá ser um ‘se’. Um ‘se’ ou um de seus irmãos fraternos: o ‘talvez’, o ‘quem sabe’, o ‘por que não?’, ou outros menos votados.

Comecemos pelo futebol, assunto que tanto me apaixona. Onde foram parar alguns momentos mágicos do esporte, tantas vezes pressentidos, sem jamais terem sido vividos? Por exemplo, onde estará guardada a medalha olímpica de ouro do nosso João do Pulo, roubada por árbitros de atletismo soviéticos, ou mesmo a nossa inédita medalha dourada do futebol? Qual terá sido o destino da rajada de vento que desviaria a bola que atingiu o olho de Tostão, permitindo que ele desfilasse sua classe mais duas copas? Onde andarão os fiscais de pista capazes de evitar o acidente de Ayrton Senna, que hoje, aos 50 anos, seria detentor de todos os recordes da Fórmula 1? E o piloto que conseguiria evitar a queda do avião com o glorioso time do Torino, base da Squadra Azurra, provável primeira tetracampeã do mundo?

Em que lugar poderemos ver o brilhante Atlético Mineiro, campeão brasileiro de 1977? Que fim levaram os títulos de times inesquecíveis como a Ponte Preta e o Cruzeiro dos anos 70, o São Caetano da virada do milênio, o Bangu dos anos 80, o América dos anos 60, a Hungria de 54, a Holanda de 74 e a França de 86? As inesquecíveis atuações de Pelé na copa de 74 e de Romário nas duas últimas olimpíadas e na Copa de 2002, onde andarão? Será que ao lado da Libertadores de 2008, que o meu Fluminense ganhou nos pênaltis? E, por Deus, onde estarão guardados os campeonatos da Seleção Brasileira de 50 e 82 e a Jules Rimet, que escapou de ser derretida?

Falando de política, tema que tanto assombra e radicaliza os brasileiros nos tempos atuais, que belos caminhos foram trilhados após comemorarmos nas ruas a aprovação da emenda das Diretas Já ou – se ela não nos fosse permitida nem na bendita transversal do tempo – ao menos depois de termos assistido à belíssima posse de Tancredo Neves? Que transformadora e bem-sucedida foi a presidência do genial Ruy Barbosa, que um dia viu nascer e florescer a carreira de outro grande político nordestino, João Pessoa, que no mundo do “se” morreu bem velho, de causas naturais, após também ter sido presidente do Brasil. E que maravilha poder viver num país que jamais teve um líder que não tivesse sido eleito pelo povo e sem qualquer período de ditadura ou censura em toda a sua história.

Nas artes, Helfil, Betinho, Cazuza e Renato Russo seguem por aqui, criando, cantando, pintando e bordando, pois essa desgraça de Aids nunca existiu na terra do “talvez”. Guimarães Rosa viveu cem anos e publicou um livro com a mesma história do Grande sertão, só que narrada por Diadorim. Vinicius maneirou na bebida e escreveu letras para quase todos os músicos da nova geração, que, por sua vez, não se deixaram sedizir pelos gêneros vulgares e continuam fazendo MPB de primeira. Aos 82 anos, Hélio Oiticica continua rompendo com todos os padrões e produzindo parangolés, Newyorkaises e penetráveis, que agora encontraram outras formas e receberam outros nomes. Como a tuberculose jamais existiu, Castro Alves, José de Alencar, Augusto dos Anjos, Cruz e Souza, Ismael Nery, Manuel Bandeira, Sinhô e Noel Rosa puderam produzir por muitas décadas, atingindo o apogeu artístico no Brasil. No mundo, o mesmo aconteceu com Chopin, Franz Kafka e George Orwell. Sem contar que o famigerado Clube dos 27 é apenas uma lenda – de forma que Jimmy Hendrix, Brian Jones, Janis Joplin, Jim Morrison, Kurt Cobain, Amy Winehouse e muitos outros ainda estão cantando lindamente pelos palcos do mundo.

Nós também poderíamos levar para essa transversal do tempo amores não correspondidos, beijos não roubados, festas que perdemos, instrumentos que não aprendemos a tocar, esportes que jamais começamos a praticar, viagens que nunca saíram do papel, livros que ficaram empoeirados nas prateleiras, aquelas horinhas a mais do dia que gostaríamos de ter passado com os nossos filhos… e um monte de outras coisas que, se tivessem acontecido, nos teriam feito um bem extraordinário. Complete este parágrafo com o maior “se” da sua vida e, aí sim, meu texto certamente ganhará um outro sentido.

Eu poderia escrever mil colunas com histórias assim, mas encerremos por aqui esse inventário sentimental das glórias que não chegaram. Pensando bem, esses momentos só foram mágicos porque foram apenas “quase”. O Brasil não seria o mesmo sem a derrota na Copa de 50 – que o garoto Pelé, diante das lágrimas do pai, jurou vingar e vingou, anos mais tarde – como também não seríamos tão fortes como nação sem os perrengues passados e os aprendizados do que não queremos repetir dos anos de chumbo. O que eu queria mesmo dizer ao amigo leitor é que, se existir esse tal lugar onde os sonhos não desaparecem, é exatamente para lá que eu gostaria de ir, quando a minha hora chegar.

Marcos Caetano

É cronista com textos publicados nas revistas Piauí, Bravo!, Trip e Placar e colunas nos jornais O Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil e Meio & Mensagem.

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