O longo voo

Nicolas Behr: "Nunca pensei nisso. Claro que nunca, jamais, em tempo algum, eu reforçaria qualquer preconceito, de qualquer tipo."
O poeta Nicolas Behr
28/05/2017

Nicolas Behr nasceu em Cuiabá (MT), em 1958, mas seu nome está indissociavelmente ligado a Brasília, cidade onde mora desde 1974. Foi na capital federal, em 1977, que apareceu para a literatura com Iogurte com farinha — feito em mimeógrafo, com 8 mil cópias vendidas pelos bares. Logo de cara, figurava entre os grandes nomes da poesia marginal, ao lado de gente como Chacal e Chico Alvim. De lá pra cá foram centenas de poemas, em mais de 20 livros. Brasília está, invariavelmente, no centro de sua poesia. Em 2008, Laranja seleta ficou entre os finalistas do Prêmio Portugal Telecom. Nicolas Behr — cujo verdadeiro nome é Nikolaus Hubertus Josef Maria von Behr — queria ser geólogo. Depois, roqueiro. Tem uma floricultura e virou poeta.

• Quando se deu conta de que queria ser escritor?
Com Iogurte com farinha, mimeografado, 1977. Mas o processo foi lento, aos poucos fui me aceitando como escritor. Na juventude, não tinha talento para música (queria ser roqueiro), aí virei poeta. Pra ser poeta só é preciso três coisas: papel, lápis e imaginação.

• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Escrever em cadernos velhos, à mão. Aí passar pro computador, imprimir e ficar rabiscando. Brasília é claramente uma obsessão poética, sem dúvida. Mas minha grande obsessão literária é não conseguir escrever prosa. Não gosto da minha escrita em prosa, por isso, nada publico.

• Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?
Romances. Leio muitos. Quase dois por mês. Triste constatação: nem os poetas leem poesia. Leio, sim, mas a minha frustração de não ser romancista me leva a ler mais prosa.

• Se pudesse recomendar um livro ao presidente Michel Temer, qual seria?
Recomendo sempre, para todos, As cidades invisíveis, de Italo Calvino. É o livro que mais excita minha fantasia.

• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Estar à toa, despreocupado, com muito tempo livre. Ninguém em casa, silêncio. Também gosto muito de escrever em quartos de hotéis. Impessoais, terríveis. Em aeroportos também. Às vezes, chego quatro horas antes do voo para poder escrever. Voos longos são ótimos também. Você não tem pra onde ir. O jeito é ficar ali escrevendo.

• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
A melhor hora do dia é quando, à noite, organizo meus travesseiros, ligo meu abajur e começo a ler.

• O que considera um dia de trabalho produtivo?
Quando a poesia me visita eu acho que o dia foi bom. Mas a poesia é sacana, safada, some. E, às vezes, te visita em momentos impróprios. Você sem papel, sem caneta e com outras ocupações profissionais… Paro tudo, anoto, rabisco. E quando tiver tempo desenvolvo o que me apareceu. Tenho uma floricultura em Brasília, não sou escritor profissional, portanto o tempo de escrita e leitura é pouco.

• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
A descoberta. O espanto. Quando consigo distrair o ego — mando ele passear — e a poesia toma conta de mim, como um banho quente. O prazer de escrever está muito ligado ao prazer de ler, depois, o poema no papel (Se você escreve com prazer, é bem possível que vão ler com prazer). Às vezes, a gente acerta a mão. O rabisco às vezes mostra mais tensão psíquica que o poema bonitinho, arrumadinho. E o poeta é um trabalhador braçal da linguagem. Risco, rabisco, arrisco. Mas não trabalho demais. Pois o poema é como um diamante ao contrário. Quanto mais polido, menos brilha. Gosto da rudeza de certos poemas, quase inacabados, que o leitor completa.

• Qual o maior inimigo de um escritor?
O ego. O ego nada cria, só atrapalha. Mas tem seu papel: quer ver o livro publicado, seu nome na capa. O ego é um cavalo doido que o criador, artista, tem que domesticar. O meu eu domestiquei.

• O que mais lhe incomoda no meio literário?
A frivolidade, a competição, as buscas desesperadas por legitimação. Gosto de ir a debates para ouvir escritores que têm algo a dizer, pois sempre aprendo muito. Não gosto quando se discute política literária, mas sim literatura. Cuidado com as moedas de troca tão comuns no meio. Aprendi, com o tempo, a distinguir o elogio sincero do elogio interesseiro, que logo apresenta a conta. Tenho vários amigos escritores, dos quais muito me orgulho
Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.Ah, não vou citar um… aliás, nenhum. Toda seleção é injusta. Prestem atenção nos escritores que chegam sem querer agradar. São os melhores.

• Um livro imprescindível e um descartável.
Grande sertão: veredas, pedra fundamental. Descartáveis? Os livros do Paulo Coelho. Tentei ler alguns mas não passei das primeiras páginas. Muito fracos, diluídos, superficiais. Ele não tem a densidade que espero de um escritor.

• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
Li certa vez um subtítulo: “Só para espíritos sensíveis”. Não era pra mim, nem abri o livro. Ou quando tentam induzir o leitor: “versos rebeldes”. Quem tem que achar isso é quem lê.

• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
Nunca pensei nisso. Claro que nunca, jamais, em tempo algum, eu reforçaria qualquer preconceito, de qualquer tipo.

• Qual foi o canto mais inusitado de onde tirou inspiração?
Minha esposa, Alcina, certa vez me disse: “Vocês, poetas, só olham para o próprio umbigo”. Comecei aí o meu melhor livro, Umbigo, o único que escrevi em estado de furor literário, em uma semana. Todas as linhas começam com “minha poesia”…

• Quando a inspiração não vem…
Nem ligo. Vou fazer outra coisa…

• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
Fernando Pessoa, o ser mais complexo que já pisou sobre a face da Terra, e que teve a grandeza de compartilhar tudo conosco.

• O que é um bom leitor?
Aquele que é fã, que me reconhece na rua. E vem falar comigo. Certa vez, levei uma porrada. Um leitor me disse: “Falta poesia na sua poesia”. Gostei. A porrada é sempre sincera.

• O que te dá medo?
Me achar o tal. Quando alguém me elogia muito, chego em casa e me ajoelho no milho (ou em pedrinhas) e leio em voz alta o poema Os limões, de Eugenio Montale. Ou A flor e a náusea do nosso Durommond (assim mesmo, durommond). Esses dois poemas me colocam no meu devido lugar: o da completa insignificância.

• O que te faz feliz?
Escrever um livro. Divulgar o lançamento. (Adoro fazer noite de autógrafos). Receber os leitores e partir pro abraço. Como sou meu próprio editor, nos lançamentos muitas vezes consigo cobrir até 80% do custo do livro. E, pra mim, o livro TEM que se pagar. Aonde vou, estou com meus livros. E de pouquinho em pouquinho, vou vendendo-os. Não tenho pudor em vender meus livros. Afinal, escrevo pra ser lido, né?
• Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
A dúvida… o medo de eu estar me autodiluindo. Me repetindo, escrevendo em círculos. O estilo é um tipo de limitação que faz você escrever só como você pode, disse o sábio Mario Quintana. Mas não temos pra onde correr, todos criamos nosso próprio estilo. E, felizmente ou infelizmente, não temos como fugir de nós mesmos. A certeza… de eu estar dando o melhor de mim, mesmo que esse melhor não apareça.

• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Ser criativo, ser original. Ser, no mínimo, sincero. E ser entendido. Minha poesia é muito limitada por essa preocupação de ser entendido. E aposto sempre no simples. No simples, não no superficial. Pois o simples é o complexo resolvido, disse um filósofo.

• A literatura tem alguma obrigação?
Quando leio um livro, procuro a fantasia, a inquietação. Viajo sem sair do lugar. Reescrevo o livro na minha cabeça. Espero que o livro aumente meus horizontes, expanda meus sentidos. Me arrepie. A literatura tem a obrigação de deixar marcas, te arranhar. Gosto dos livros que, de alguma forma, me machucam.

• Qual o limite da ficção?
Não existe limite.

• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
No momento, abril de 2017, não temos líderes. Nossa classe política — de onde, normalmente, vêm os líderes — não está à altura dos desafios que o Brasil tem pela frente. E essa falta de líderes ainda vai nos custar caro. Os supostos líderes atuais estão todos contaminados pela corrupção quase que generalizada que grassa no meio político. Vai levar ainda umas gerações para que novas lideranças apareçam. E vão aparecer, com certeza.

• O que você espera da eternidade?
Eu espero ser lembrado. Essa ilusão, esse autoengano (ser lembrado) alivia o meu dia a dia, me consola. E torna o fardo de viver mais leve. Torna a minha vida possível. (Desculpe, fui sincero.)

Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

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