Nos abismos da memória

Eric Nepomuceno: “O que me dá mais prazer? Ora, primeiro escrever a história que rondava minha alma há meses, às vezes há anos. E depois, cortar, cortar.”
Eric Nepomuceno, autor de “Bangladesh, talvez e outras histórias”
25/02/2021

O escritor, jornalista e tradutor Eric Nepomuceno enveredou cedo para o caminho das letras, lá pelos seus 15 ou 16 anos, mas produzindo poemas — os quais nunca mais viu nem cometeu. Nos dois anos seguintes, começou a praticar o conto. Hoje, aos 73 anos, vive há mais de meio século do que escreve — cercado, idealmente, de silêncio e solidão. “Não saberia viver de outra maneira”, afirma o autor dos livros Bangladesh, talvez e outras histórias (2018), O massacre (2008) e A palavra nunca (1997), entre outros. Como tradutor, trouxe para o português nomes como Julio Cortázar, Eduardo Galeano e Gabriel García Márquez. Durante a pandemia, que explodiu no Brasil em março de 2020, Nepomuceno deu início ao programa Leituras na Quarentena, no seu canal do YouTube.

• Quando se deu conta de que queria ser escritor?
Acho que na adolescência, lá pelos meus 15 ou 16 anos. Comecei escrevendo poemas, que nunca mais li nem cometi. E lá pelos 17 ou 18, contos. Vivo há exatos 55 anos do que escrevo. Não saberia viver de outra maneira…

• Quais são suas manias e obsessões literárias?
A maior obsessão talvez seja escrever da maneira mais sucinta possível, concentrando o texto em sua essência. Isso vale tanto para literatura de ficção como de não ficção. E a maior mania, em se tratando de literatura de ficção, é começar escrevendo à mão, e só ir para o teclado quando souber como a história vai continuar. Já quando faço traduções, a mania central é não ler antes: é ir lendo conforme vou traduzindo. E também começar à mão: a palavra tem outro peso, outra velocidade. No teclado, sou veloz. Na caligrafia, nem de longe.

• Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?
Jornal impresso. Muitas vezes, como durmo tarde, antes de fechar o expediente leio vários jornais do dia seguinte. E quando me levanto, leio de novo, nas versões impressas. É outra leitura…

• Se pudesse recomendar um livro ao presidente Jair Bolsonaro, qual seria?
Em primeiro lugar, a cartilha de alfabetização. E depois, um dicionário básico e elementar do idioma português.

• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Silêncio, solidão e não estar com saldo bancário negativo. Ah, sim: um bom vinho. E ouvir música. Pode até ser cantada, serve apenas de pano de fundo. Entendo que a literatura tem as mesmas regras básicas da música: harmonia, linha melódica, pausas, andamento, variações de intensidade… Ouvir música enquanto escrevo ajuda.

• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
As mesmas, porém sem a música.

• O que considera um dia de trabalho produtivo?
Depende, varia muito. Às vezes varo a noite escrevendo sem parar, e é quando me sinto melhor. Às vezes não consigo impedir que a mão fique seca, até que depois de horas saem duas, três, quatro linhas e pronto, já sei o que virá a seguir (embora pouquíssimas vezes o que vem depois seja aquilo que eu pensava…) e posso parar em paz.

• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
Sou um escritor lentíssimo e um datilógrafo veloz. O que me dá mais prazer? Ora, primeiro escrever a história que rondava minha alma há meses, às vezes há anos. E depois, cortar, cortar.

• Qual o maior inimigo de um escritor?
Além do gerente do banco, a vaidade. Uma coisa é ter certeza de que conseguiu escrever o que pretendia. Outra, é se achar o Sol.

• O que mais lhe incomoda no meio literário?
Isso: a soberba, a vaidade. Convivo, no Brasil, com pouquíssimos escritores, todos eles amigos há décadas. Convivo mais com compositores, cineastas. Fora do Brasil, convivo mais com escritores. Mas sempre fora das igrejinhas: prefiro as máfias.

• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
Ah, vários. O mexicano Juan Rulfo, o uruguaio Juan Carlos Onetti… e, no Brasil, país amnésico, um robusto punhado. Campos de Carvalho, por exemplo. Lúcio Cardoso, J. J. Veiga, mestre magistral… Menciono apenas alguns dos que se foram e acabam correndo o risco do esquecimento. Dos que continuam por aqui, o esplêndido Augusto de Campos.

• Um livro imprescindível e um descartável.
De imprescindíveis, menciono três: Tom Sawyer, O velho e o mar e Ninguém escreve ao coronel. Descartável? Ah, um monte. Aliás, a maioria do que se imprime neste país, a começar pelos de autoajuda, esse infernal “ajuda-me a mim mesmo a enganar trouxas e me encher de dinheiro”.

• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
Em primeiro lugar, ser mal escrito. Em segundo, soar falso, superficial, manipulado. Terceiro, falar, falar, falar e não dizer nada.

• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
Qualquer assunto é válido. Qualquer personagem. Até mesmo Jair Messias.

• Qual foi o canto mais inusitado de onde tirou inspiração?
Confesso que, com a pandemia e o isolamento, minha cabeça anda parecendo um mingau. Não entendi o “canto”. Lugar? Canção? A tempo: não acredito em inspiração. Digo sempre que tenho pouquíssima imaginação e muita, muita memória. É dela que vem o que escrevo.

• Quando a inspiração não vem…
Que venha o esforço, a transpiração, para que a memória me entregue temas, situações, pessoas.

• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
A vida me deu, entre outras maravilhas, ter podido convidar não só para um café, mas para grandes comilanças, grandes vinhos, parte essencial do firmamento da minha memória. Gostaria de ter de volta todos aqueles que cometeram a indelicadeza de ir embora para sempre. Mas dos que não conheci, Ernest Hemingway, Scott Fitzgerald, Joyce Carol Oates, por exemplo. São os que me ocorrem agora.

• O que é um bom leitor?
Não sei. De verdade, não sei. Aquele que lê e viaja no livro? Acho uma resposta boba…

• O que te dá medo?
Tudo. Como escritor? Não contar mais com a maneira de mergulhar na memória e inventar mentiras e contá-las como se fossem verdades. Como ser vivo? Melhor nem pensar…

• O que te faz feliz?
Sou movido a afetos. Os amigos, as amigas, para não mencionar família, claro. Tenho uma namorada há 50 anos, e isso me dá uma felicidade sem fim. Conviver com meu filho Felipe. A pergunta, me perdoe, é um tanto vaga. Com relação ao meu ofício, me faz feliz chegar ao fim de um trabalho que me propus.

• Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
Aprendi com meu irmão Eduardo Galeano que a dúvida vale mais que a certeza. É na dúvida que você busca respostas. As dúvidas me guiam: era isso? É isso? Termina assim? Uma vez, perguntaram ao García Márquez quando ele sabia que o texto estava pronto. A resposta: é que nem quando você faz uma sopa. Chega um momento em que você prova e diz: está pronta. Pura intuição. Daí, meu gosto pela dúvida.

• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Ser claro, conciso, e acreditar piamente na mentira que estou contando a partir da memória.

• A literatura tem alguma obrigação?
Tem. Ser bem feita, de maneira honesta.

• Qual o limite da ficção?
A mesma que a vida nos impõe: ser decente.

• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
Ao espelho, para que se visse, se assustasse e sumisse.

• O que você espera da eternidade?
Que seja eterna. Só que não estarei: não acredito nela.

Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

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