Literatura para ouvir

Rafael Gallo: "Ainda há muito trabalho a ser feito com o texto. É mais um dia, como tantos outros."
Rafael Gallo, autor de “Rebentar”
01/07/2022

Para Rafael Gallo, palavra e som vivem em plena harmonia. Graduado em Música pela Unesp, ele levou essa influência para a literatura, criando ficção como se fosse uma “partitura musical”.

“As palavras podem ter, além do papel semântico e sintático, também uma espécie de ‘função harmônica’, ou tornarem-se um ‘motivo’”, diz o escritor paulista nascido em 1981.

Gallo surgiu no cenário literário há dez anos, quando venceu o Prêmio Sesc de Literatura 2011/2012 na categoria contos com Réveillon e outros dias. Três anos depois, com Rebentar, fez sua estreia como romancista ao narrar uma comovente história sobre o desaparecimento de uma criança.

Representante de uma nova geração de escritores brasileiros, ele defende “que deveríamos prestar mais atenção aos textos e menos aos autores”. “Isso já seria um bom começo para se direcionar melhor a atenção a quem deveria receber mais.”

• Quando se deu conta de que queria ser escritor?
Pode parecer estranho, mas foi só quando tive meu primeiro livro nas mãos. Eu já gostava de escrever, claro — se não, nem livro haveria — mas sinto que pode haver uma diferença entre as duas coisas, como há entre gostar de jogar futebol e querer ser jogador de futebol. Não é uma questão de profissionalismo (tenho outro emprego, em nada relacionado à escrita), mas do lugar que certa atividade ocupa na sua vida.

• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Não acho que seja mania ou obsessão, mas tendo a olhar para o texto que escrevo como se fosse uma partitura musical. As palavras podem ter, então, além do papel semântico e sintático, também uma espécie de “função harmônica”, ou tornarem-se um “motivo”. Assim, quando um termo retorna, carrega consigo uma espécie de ressonância, de acúmulo dos sentidos que teve nas outras incidências ou na relação com o todo.

• Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?
Aquela que provoque alguma espécie de abertura, que acrescente algo ao meu pequeno mapa das coisas. Pode ser por uma provocação de pensamento, por uma nova forma de beleza conhecida ou a possibilidade de um olhar diferente para o mundo.

• Se pudesse recomendar um livro ao presidente Jair Bolsonaro, qual seria?
Aquele exemplar do segundo volume da Poética, de Aristóteles, mencionado no O nome da rosa, do Umberto Eco. Aquele exemplar específico.

• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Música nos ouvidos, chocolate na boca, um computador às mãos e, na cabeça, uma história que me comove, me deixa inquieto de tanta vontade de escrevê-la.

• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
Muito parecidas com as ideais para escrever. Basta trocar o computador pelo livro a ser lido e, no lugar de uma história que trago comigo, receber a de outra pessoa. Mas que ela também comova e desassossegue, de tanta vontade de lê-la.

• O que considera um dia de trabalho produtivo?
Quando, além de dar conta das outras demandas da vida, consigo escrever algo que sinto fazer jus à história que quero contar. Pode ser só um parágrafo ou dois (em geral, não passa muito disso).

• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
Provocar os encontros da história consigo mesma. E uma espécie de desencontro amigável comigo mesmo, quando escrevo algo diferente do que havia pensado até então.

• Qual o maior inimigo de um escritor?
Não há um inimigo absoluto. Pode mudar, ou mesmo ser o oposto, para diferentes pessoas. Por exemplo: a falta de tempo pode ser impeditiva para uns e catalisadora para outros; ter um olhar mais generoso para o próprio trabalho ajudaria alguns, enquanto para outros é a pior autoindulgência.

• O que mais lhe incomoda no meio literário?
Que a relação entre trabalho bem-feito e reconhecimento se perca quase em absoluto, ou pior: pareça funcionar do avesso muitas vezes. Canso de ver gente séria e capaz não ser “lembrada”, enquanto se dá microfone, oportunidades e posições de destaque (e poder) a muitos que já se mostraram incompetentes, desleixados com o trabalho ou mesmo canalhas. A gente vive reclamando que não há público para a literatura, mas o que oferecemos muitas vezes?

• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
Acho que deveríamos prestar mais atenção aos textos e menos aos autores. Isso já seria um bom começo para se direcionar melhor a atenção a quem deveria receber mais.

• Um livro imprescindível e um descartável.
Grande sertão: veredas é imprescindível. Dos mais descartáveis, nem os títulos devem ser lembrados.

• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
Muitos, mas em especial a presença de ideias ou de um olhar que reforce estereótipos, desigualdades e outras formas de preconceito.

• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
Mesmo que eu conseguisse pensar em algum, outra porção da minha cabeça começaria a se desafiar, para encontrar uma história centrada justamente nesse assunto e que seja cabível. Sei porque já aconteceu.

• Qual foi o lugar mais inusitado de onde tirou inspiração?
Enquanto escrevia Rebentar — um romance que trata do desaparecimento de uma criança — estava em um hipermercado e soou o Código Adam, que é um alarme para quando desaparece uma criança no estabelecimento. Eu me senti como se fosse o único ali a saber o que estava acontecendo, porque tudo seguiu normalmente, nenhum protocolo foi seguido. Talvez houvesse uma criança sendo levada embora naquele momento, mas sequer fecharam-se as portas. Acabei incluindo uma cena assim no livro, em que a protagonista passa pela mesma situação.

• Quando a inspiração não vem…
Ainda há muito trabalho a ser feito com o texto. É mais um dia, como tantos outros.

• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
Clarice Lispector. Não seria exatamente divertido, acho, mas com certeza inesquecível.

• O que é um bom leitor?
Aquele que se abre ao livro, com o perdão do trocadilho. Que não busca somente uma confirmação do próprio pensamento ou gosto. E, se não for pedir demais, que leia com atenção.

• O que te dá medo?
Ser acometido por alguma doença que me aniquile. Morcegos. Pular de bungee jump. Desses três, só o último gostaria de encarar.

• O que te faz feliz?
Sentir que estou no meu lugar, que volto a ser eu mesmo (às vezes derivo). Ver meus amores bem e felizes. Um bom vinho também tem efeitos consideráveis nesse âmbito.

• Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
Sempre a dúvida: onde fica o coração da história? Escrevê-la é a busca por se aproximar desse coração.

• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Está na resposta anterior.

• A literatura tem alguma obrigação?
Não. Quem poderia obrigá-la a alguma coisa?

• Qual o limite da ficção?
Não acho que a ficção tenha limites, a priori, mas quem escreve, sim. Podem ser temporárias, superáveis, mas ter ciência de tais limitações individuais, e respeitá-las, é recomendável.

• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
Primeiro, perguntaria se ele vem em paz. Em caso negativo, eu o levaria, naturalmente, ao líder máximo da nação, o atual presidente da República.

• O que você espera da eternidade?
Eu não espero sequer que haja eternidade.

Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

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