Escreve-se quando dá

Javier A. Contreras: "A dúvida sobre se o meu trabalho está suficientemente bom sempre será uma sombra"
Javier A. Contreras, autor de “Crocodilo”
28/02/2020

Uma sucessão de desilusões conduziu Javier Arancibia Contreras à ficção, no mesmo período em que ele resolveu fazer jornalismo e depois de ter desmanchado uma banda de rock. Se a experiência nos palcos presumiria exposição ao público, o que o autor de Imóbile (2008) e O dia em que eu deveria ter morrido (2011) mais gosta no processo de escrita é “ficar ali, só você e o seu texto, sem ninguém no mundo saber o que está acontecendo naquela história”. Seus livros mais recentes são Crocodilo (2019) e Soy loco por ti, América (2016).

• Quando se deu conta de que queria ser escritor?
Foram vários momentos. Na maioria das vezes, inconscientemente. Primeiro, quando percebi que sempre era o último a ser escolhido nas equipes de esporte das aulas de educação física. Depois, quando repeti de ano e cheguei à conclusão de que eu não era tão bom quanto imaginava na escola. Por fim, quando a minha banda de rock se desmanchou e eu, então, sem muita opção em vista, resolvi fazer Jornalismo. Comecei a escrever ficção nessa última fase.

• Quais são suas manias e obsessões literárias?
No começo, sempre lia tudo o que escrevia antes de começar a escrever novamente. Ao mesmo tempo que ajudava a entender melhor o texto, atrapalhava no tempo. O primeiro livro seguiu esta regra até o fim. Demorei anos para terminá-lo. Depois se tornou inviável. Hoje, releio somente o capítulo ou trecho dele pra embalar a escrita.

• Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?
Qualquer livro que eu esteja a fim de ler. Um pouco de notícia também, embora isso mais me atrapalhe que ajude.

• Se pudesse recomendar um livro ao presidente Jair Bolsonaro, qual seria?
Meu livro Soy loco por ti, América. Como fala de ditadura militar, tortura, guerra das Malvinas, entre outros assuntos, poderia ajudá-lo a compreender um pouco melhor os temas. Mas como provavelmente ele não lesse só pelo fato de a capa ser vermelha, talvez ele postasse um tweet falando mal da obra, chamando-me de comunista, o que seria a glória.

• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Ah, pra mim isso não existe. Escreve-se quando dá. Nos intervalos que surgem. No meu caso, tarde da noite, quando já trabalhei, já fui e voltei das atividades da minha família, já jantei, e estão todos dormindo.

• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
No ônibus e na cama, antes de dormir.

• O que considera um dia de trabalho produtivo?
O dia em que se escreve algo.

• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
Justamente o processo. Ficar ali, só você e o seu texto, sem ninguém no mundo saber o que está acontecendo naquela história.

• Qual o maior inimigo de um escritor?
A vaidade em achar que aquele texto é das melhores coisas que já se escreveu e a preguiça de melhorá-lo.

• O que mais lhe incomoda no meio literário?
Não frequento muito.

• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
O santista Plínio Marcos, autor de peças famosas como Navalha na carne e Dois perdidos numa noite suja. Um cronista e contista de mão cheia, com uma linguagem muito original.

• Um livro imprescindível e um descartável.
Imprescindível: O estrangeiro, de Albert Camus. Descartável: os livros do Olavo de Carvalho.

• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
Querer explicar demais. Dar lições ao leitor.

• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
Tenho a mente aberta. E gosto de temas latentes e polêmicos.

• Qual foi o canto mais inusitado de onde tirou inspiração?
Do calor. Escrevia numa quitinete e depois num quartinho onde fazia muito, mas muito calor. Quem leu meu primeiro romance, Imóbile, sabe do que estou falando.

• Quando a inspiração não vem…
Senta a bunda na cadeira e escreve.

• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
Tomaria um café com o Camus e uns drinques com o Bukowski.

• O que é um bom leitor?
Aquele que dá uma chance ao livro.

• O que te dá medo?
Depois de ser pai, morrer cedo.

• O que te faz feliz?
Fazer coisas simples e prazerosas com minha mulher e minhas duas filhas. Ir à praia, ao cinema, comer. Deitar todos na cama de casal e ficar conversando e rindo sobre o nada.

• Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
A dúvida sobre se o meu trabalho está suficientemente bom sempre será uma sombra. As certezas sempre atrapalham o artista.

• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Escrever uma boa história. E bem.

• A literatura tem alguma obrigação?
Obrigação não combina com arte. Mas fazer o leitor sair da jornada de um livro com sentimentos ou questionamentos à flor da pele é algo maravilhoso.

• Qual o limite da ficção?
A última linha.

• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
Se ele tivesse cara de mau, o levaria até Jair Bolsonaro. Se tivesse cara de bonzinho, ao José Mujica.

• O que você espera da eternidade?
Bem, algumas histórias se eternizam. Quem sabe alguma das minhas não siga esse caminho?

Crocodilo
Javier A. Contreras
Companhia das Letras
184 págs.
Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

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