Em busca da invisível corrente rítmica

Antônio Torres; "O descartável está piscando para os leitores (perdão, consumidores) nas primeiras bancadas das livrarias"
Antônio Torres, autor de “Essa terra”
27/01/2018

Antônio Torres nasceu no pequeno povoado do Junco (hoje a cidade de Sátiro Dias), no interior da Bahia, em 1940. Aos 32 anos, estreou na literatura com o romance Um cão uivando para a Lua. Seu principal livro é Essa terra, de 1976, que trata do êxodo rural de nordestinos em busca de uma vida melhor nas grandes metrópoles do Sul, principalmente São Paulo. Sua obra — traduzida para diversas línguas — já ganhou os mais importantes prêmios literários brasileiros. Em 1998, foi condecorado pelo governo francês como Chevalier des Arts et des Lettres. Desde 2014, ocupa a cadeira 23 da Academia Brasileira de Letras.

• Quando se deu conta de que queria ser escritor?
Foi no mundo agrário e ágrafo em que nasci, no sertão da Bahia, onde, no entanto, havia uma escola com leituras diárias em voz alta e exercícios de escrita. Um dia a professora pediu uma redação sobre um dia de chuva, o que exigia muita imaginação, pois o lugar em que vivíamos era chegado a longas estiagens. Acho que foi nesse dia que ela fez de mim um escritor.

• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Ouvir música instrumental — o Modern Jazz Quartet, Thelonious Monk e Tom Jobim, Baden Powell e Miles Davis etc. — para pegar o embalo da escrita.

• Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?
Leio sempre poesia em busca da sua invisível corrente rítmica, e fluir de imagens, de que tanto falava o mexicano Octavio Paz.

• Se pudesse recomendar um livro ao presidente Michel Temer, qual seria?
Não verás país nenhum, de Ignácio de Loyola Brandão, uma distopia política e ecológica em que o Estado e a sociedade dispõem de forma autoritária e truculenta sobre os recursos da natureza. A recomendação vale também para futuros presidentes e congressistas.

• Quais são as circunstâncias ideias para escrever?
“Silêncio, exílio e astúcia”, como dizia o finado James Joyce.

• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
Tempo, com um livro à mão numa poltrona, ou rede, ou cama. Ou uma longa viagem de ônibus ou de avião.

• O que considera um dia de trabalho produtivo?
Aquele em que consigo escrever pelo menos um parágrafo que me soe como digno de nota.

• O que lhe dá mais prazer no processo da escrita?
Uma frase que me surpreenda.

• Qual o maior inimigo de um escritor?
O narcisismo — se mal administrado.

• O que mais lhe incomoda no meio literário?
O endeusamento de uns em detrimento de outros igualmente talentosos.

• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
Márcio Souza, que mapeou literariamente a Amazônia, em romances como Galvez, o imperador do Acre, Mad Maria, Lealdade etc.

• Um livro imprescindível e um descartável.
Imprescindível: A cidade de Ulisses, da grande romancista portuguesa Teolinda Gersão, recém-publicado no Brasil pela Oficina Raquel. Já o descartável está piscando para os leitores (perdão, consumidores) nas primeiras bancadas das livrarias.

• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
A precariedade de linguagem e estilo.

• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
Qualquer um que escape dos meus domínios.

• Qual foi o canto mais inusitado de onde tirou inspiração?
O cemitério Père-Lachaise, em Paris, onde encontrei inspiração para um capítulo do romance Pelo fundo da agulha.

• Quando a inspiração não vem…
Melhor parar para ouvir Rosa, de Pixinguinha — Tu és, divina e graciosa… —, no violão de Baden Powell, ou no bandolim de Hamilton de Holanda. Ou para fazer uma caminhada.

• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
A bela poeta baiana Myriam Fraga, que dedicou praticamente toda a sua existência à Fundação Casa de Jorge Amado. Entre os vivos, gostaria de convidar Aleilton Fonseca, também meu conterrâneo, e muito bom de prosa.

• O que é um bom leitor?
Aquele que, quando você já começa a se sentir desanimado com a vida literária, surge em seu caminho como que por encantamento para lhe dar a maior força.

• O que te dá medo?
O Brasil de hoje. E o mundo, tal qual o estamos vendo. Como se isso fosse pouco, há ainda o medo de a fonte secar, da perda da memória, da morte.

• O que te faz feliz?
Abrir os olhos esta manhã e ver que estou aqui. E sendo capaz de funcionar.

• Qual dúvida ou certeza guiam o seu trabalho?
Certeza nenhuma. Dúvidas, muitas. E estas me levam à obsessão de ficar horas, dias, até semanas reescrevendo um mesmo parágrafo.

• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Se o meu teclado está batendo errado ou certo.

• A literatura tem alguma obrigação?
A de explorar o jogo da vida, da representação e da linguagem.

• Qual é o limite da ficção?
Apenas a autonomia de voo de cada ficcionista pode estabelecer tal limite.

• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você levaria?
A um(a) psicanalista, para saber o que está me levando a ter sonhos tão esquisitos.

• O que você espera da eternidade?
Que nela eu possa ir à forra, passando em revista tudo o que não tive tempo de ler em vida, a começar pela obra completa de Jorge Luis Borges, que escreveu uma história da eternidade.

Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

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