Nas profundezas escolho e colho
Tem que ser muito fêmea
Pra saber lavoura
Pedra, praga, erva daninha
Adriane Garcia
— Mãe-Nossa, explique-me por que eu não posso correr durante o dia até a beira do lago, deitar-me na grama macia, tomar sol e depois nadar? Por que durante o dia é preciso estar sempre escondida debaixo das árvores?
— Ah, minha filha, já está na hora de você saber. Como li no livro de um antigo sábio “se a criança pergunta, é porque já está pronta para saber”!
Eu não nasci aqui, livre como você. Nasci e cresci fechada lá num daqueles edifícios altíssimos e murados, entre cercas elétricas, naquela área muito perigosa para nós, da qual nunca devemos nos aproximar e só vemos de longe. Era lá que eu vivia, fechada, como continuam todos os que nós chamamos de “trancafiados, os que confiam nas trancas”.
Eu nasci trancafiada, como todas as mães e pais de nosso Mundo-Parque.
Gente, de carne e osso, pessoalmente, só conhecia um pai, uma mãe e dois irmãos homens. Eu os via pouco, cada um dos rapazes ficava fechado em seu quarto, os pais no quarto deles, que devia ser bem maior do que os nossos. Não sei bem, porque nunca entrei lá. Só quando eles me chamavam é que eu saía do meu quarto e ia até a sala comum, em geral para receber instruções. Quando éramos crianças, isso acontecia todos os dias, porque eles precisavam nos treinar, ou educar, como diziam, mas quando nos consideraram já formados, só nos encontrávamos de vez em quando, uma ou duas vezes por semana.
Aliás, eu detestava ter de sair do meu quarto, atravessando a cabine de higienização que havia em cada passagem do nosso apartamento. Quando a gente abria a primeira porta do quarto e pisava na placa móvel para chegar à segunda porta, naquela cabinezinha entre as duas, disparavam-se uns chuveirinhos de álcool em gel, que eu detestava e me sentia toda melada com aquilo, mesmo depois de evaporado o álcool. Eu preferia mesmo era ficar sozinha no meu quarto, ou fazendo nada ou aproveitando os três minutos em que a janela automática se abria para o drone entregar minhas refeições, espichar a cabeça para fora e espiar o mundo proibido. Fora isso, só restava mesmo o comunicador à distância.
Cada um de nós tinha seu próprio comunicador eletrônico e seu projetor de imagens virtuais para assistir a algum filme, um espetáculo qualquer ou estudar algum assunto que nos fosse permitido saber. Além disso, servia também para conhecer outras pessoas à distância, principalmente fazer amigas ou amigos de nossa idade, ou seja, pertencentes ao mesmo lote que nós.
Pelos nossos nomes, podíamos saber quem era exatamente do mesmo lote. Eu pertencia ao LoteSU8 e todas as meninas desse lote tinham nomes iniciados pela sílaba Su. Fora algumas poucas Susanas, Suelys ou Sulamitas, a maioria das famílias escolhia para suas filhas o nome Sultana, que estava na moda. Comigo não foi diferente. Eu era só Sultana, até me libertar e vir para o parque, onde me tornei quem você conhece agora: Sultana Rosa.
Não era difícil fazer amizades desse tipo: bastava a gente entrar pelo comunicador em uma das pracinhas digitais mais frequentadas e gritar: — Sultana! Logo apareciam várias delas e a gente começava a conversar para se conhecer. Amizade mesmo, como temos aqui, não era fácil fazer.
Nós, do mesmo lote, somos todas muito parecidas, quase a mesma cara e o mesmo corpo, escolhidos pelos Dirigentes, ou Dirs, como os mais convenientes e programados em provetas, nos laboratórios, para ter essas características através da engenharia genética. Não éramos como vocês, nossas filhas, cada uma com uma carinha especial que é só sua.
Como a maioria era bem disciplinada, a gente sabia as mesmas coisas, pensava do mesmo jeito, fazia as mesmas brincadeiras e cantava as mesmas músicas. Então, na maioria das vezes, tratava-se de trocar um tédio — o do nosso quarto fechado — por outro — o das mesmas conversas, através do comunicador, com gente que tinha quase a mesma cara que eu. Mesmo se, em vez de chamar pelas Sultanas, eu chamasse as Suelys, Sulamitas, Susanas, ou a única Suelen que encontrei, nada mudava muito.
— Mas então, como foi que você e nossas outras mães conseguiram sair de lá e vir viver no Mundo-Parque?
— Aqui é que começa a parte mais interessante da nossa aventura!
Por mais que os Dirigentes e os pais tentassem nos programar direitinho para as finalidades deles, algo estranho acontecia com algumas de nós: um vago desejo de liberdade — embora o Novíssimo Dicionário Único definisse a palavra liberdade como “estado de quem vive desprotegido, altamente perigoso para a sobrevivência da espécie humana” —, um sentimento de revolta, um interesse por encontrar gente diferente e por ser nós mesmas diferentes dos outros, sair daquela monotonia.
— Quais são as finalidades desses Dirigentes, mãe?
— Depende a que categoria a pessoa pertence.
Se for designada para a categoria de Dirigentes, tem que ter muito gosto pelo poder, um desejo de acumular riquezas sem limite, estar convencido de ser muito melhor do que os outros e merecer só prazeres, fazer acordos de cumplicidade com os demais Dirigentes e gostar de viver fora da Terra, em cúpulas protetoras que eles construíram na Lua, em Marte e estavam construindo sobre as nuvens de ácido sulfúrico que pairam acima do planeta Vênus. Aquilo que se vê nos céus e nos encanta por seus movimentos, sua beleza e brilho, para eles é só um lugar para viver seus privilégios e se exibirem uns para os outros, como pavões abrindo a cauda. Depois há a categoria dos técnicos e cientistas, os Ordenantes, ou Ords, que são os que desenvolvem e administram todos os programas digitais para garantir o “Sistema”; esses têm certos privilégios, espaços maiores e mais bonitos para viver no topo dos edifícios e, uma vez ao ano, podem ser premiados com uma viagem de recreio às cidades-cúpulas dos Dirigentes. Em seguida vem a categoria de Reprodutores, ou Reps, à qual nós, as Sultanas, pertencíamos. Vivem para servir como um banco de óvulos e esperma a ser utilizados na reprodução da sua própria ou das outras categorias. Especialmente as mulheres podem ser necessárias para gerar pessoas cuidadosamente programadas e que, por isso, para sua gestação, exigem um útero humano, mais seguro, não bastando o útero plástico produzido pelas impressoras 3D. O destino desses é esperar para ver se vão ser utilizados como reprodutores ou descartados. Ainda há mais duas categorias: os Vigilantes, ou Vigs, cujo nome já diz a função, geneticamente programados para serem muito fortões e sem medo de nada, prontos a usar a força bruta contra qualquer um de nós, menos contra os Dirigentes, ou seja, preparados somente para vigiar e punir. Finalmente, os Laborantes, ou Labs, são a categoria que eles consideram mais baixa, preparados para ser muito hábeis em atividades de produção das coisas materiais que os Dirigentes desejam, mas geneticamente programados e treinados para não pensar nem perguntar nada, ou para acreditar que assim foram feitos por algum deus todo-poderoso e assim devem viver a vida toda, para ser descartados só quando deixarem de ser produtivos. Trabalham como loucos, quase sem descanso, para retardar a hora do seu descarte.
— Mas como vocês escaparam dali?
— Ah, filha, foi quando descobrimos que éramos diferentes, eu, Sultana Margarida, Sultana Hortênsia e todas as outras mães-flores que você conhece tão bem! Vou lhe contar direitinho porque foi uma aventura muito emocionante! Você deve saber de tudo para dar o devido valor à bela vida que tem.
Pois bem: é claro que a gente nunca falava diretamente dos sentimentos secretos que algumas de nós tínhamos, mas através de um certo brilho no olhar, uma piscadela ou um sorriso enviesado e irônico, a gente podia reconhecer as outras que o Sistema chama de desviantes e correm o risco de, se forem descobertas, ser condenadas ao descarte imediato.
Para nos distinguirmos, uma Sultana da outra, cada uma tinha uma numeração baseada na área de domicílio, número do edifício e andar em que morava. Assim, descobri que uma das outras Sultanas desviantes vivia exatamente quatro andares acima do meu. Então tive uma ideia perigosa, mas genial, eu achei!
Minutos antes da hora em que o drone normalmente chegava com meu almoço, virei a câmera do meu comunicador para a janela e aproximei bem o foco. Em seguida chamei pelo comunicador Sultana.044.03.08 — hoje chamada Mãe Sultana Hortência — e bloqueei todas as outras comunicações, de modo que, até algum Ord descobrir e corrigir isso, havia uma chance de só ela poder ver o que eu ia fazer, como sempre, quando a janela se abrisse para o drone.
Ela viu e entendeu tudo! Passou a fazer a mesma coisa que eu. Quando acontecia de nossos drones-garçons chegarem exatamente à mesma hora, a gente aproveitava aquele minutinho para se ver ao vivo e acenar uma para a outra! Assim a nossa amizade cresceu muito, como uma verdadeira amizade deve ser: ao vivo, alimentada pela proximidade e a confiança mútua e não através de traquitanas eletrônicas. A essa altura, ambas tivemos a certeza de que éramos mesmo desviantes e podíamos confiar uma na outra.
Então, como me acontecia muitas vezes, uma noite eu estava largada na minha cama, pensando na coisa tão sem graça que era minha vida. Já tinha passado a hora de jantar, mas o meu drone estava atrasadíssimo. Às vezes acontecia isso, atrasavam-se muito por causa de algum engarrafamento de trânsito aéreo, por descuido dos Ordenantes. Afinal, ninguém é perfeito, apesar de os cientistas Ords pretenderem chegar a prever, pela genética, exatamente tudo. A Natureza, porém, tem suas manhas e nós não somos só o que manda nossa genética, somos também o que os acasos de nosso crescimento possibilitam.
Como já disse, eu estava largada na cama, no escuro, só pensando e olhando pela janela o pouco que eu podia ver das estrelas, que sempre amei assim, de longe, misteriosas. Afinal, ouvi o zumbido da janela se abrindo e corri pra pegar o jantar e espiar o mundo quando, de repente, alguém, como uma visão descendo do alto, apareceu diante de mim, deu um sopapo no drone que caiu lá embaixo, despedaçado, e saltou para dentro do meu quarto no último segundo antes que a janela se fechasse de novo! Fiquei apavorada, deixei cair a caixinha comestível com as pílulas, os pozinhos e a sopa sem graça, mas logo ouvi:
— Sou eu, Sultana08, não se assuste, só me ajude!
Quando meu coração desacelerou e pude ajustar meus olhos, eu a vi e a reconheci logo. Então, pela primeira vez na minha vida, por impulso, eu abracei alguém, aquela minha irmã igual a mim. Aquele abraço acabou de nos transformar de vez em desviantes! Nós não iríamos mais, de jeito nenhum, aceitar a vida a que queriam nos condenar.
Dividimos entre nós aquele jantar insosso, porque sabíamos que deveríamos nos manter fortes para o que desse e viesse. Não acendemos nenhuma luz e até nos ajeitamos as duas debaixo da grande cama, para não haver perigo nenhum de descobrirem que naquele quarto havia duas Sultanas.
Ela me explicou que tinha amarrado todos os lençóis e cortinas de algodão de seu quarto, fazendo uma longa corda, prendeu uma ponta num móvel pesado, e ficou sempre alerta para, numa noite em que nossos drones com o jantar chegassem ao mesmo tempo, tentar aquela loucura que tinha sido o salto de sua janela para a minha!
Por sorte, com o tranco que ela deu na corda para entrar pela minha janela, a ponta lá de cima tinha se soltado e grande parte da corda tinha vindo atada à cintura dela, ficando só uma parte fora da janela, presa no encontro das duas folhas da vidraça inquebrável fechada. Na manhã seguinte, assim que o drone chegou com o desjejum, enquanto eu pegava a caixinha dele, Sultana.08 puxou o resto da corda para dentro.
Deu tudo certíssimo e percebemos que, juntas, estávamos prontas para planejar e executar um plano de fuga definitiva, se conservássemos a nossa coragem e muita atenção e prudência para que ninguém desconfiasse.
Além da corda, a outra Sultana teve a esperteza de trazer também, amarrada à cintura, uma fronha, dentro da qual havia reunido várias peças de seu comunicador, com a ideia de talvez precisarmos construir um novo. Escolhemos outras peças do meu próprio comunicador que podiam se combinar com as de minha nova irmã, além de mais algumas coisinhas que pudéssemos carregar e fossem úteis no mundo desconhecido.
Daí por diante tudo correu como você já pode imaginar. Em três dias planejamos tudo. Juntamos todos os nossos lençóis e cortinas e fabricamos uma corda para cada uma chegar lá bem perto do chão, bastando um salto corajoso para cairmos sem nos ferirmos. Daí em diante, não havia quase plano nenhum, só aventura.
Todas as noites esperávamos o jantar preparadas, pois teríamos de aproveitar o atraso do drone para sair já na noite bem escura e vazia, o mais perto possível da hora morta, quando tudo ficava silencioso e a maioria dos drones e dos Vigilantes já teria voltado para suas bases.
Por vários dias esperamos as melhores condições para tentar fugir, dividíamos entre nós duas as refeições que chegavam e emagrecíamos — o que não era mau para nosso plano de fuga —, cansávamos de amarrar e desamarrar as fronhas em nossas cinturas! Finalmente chegou o momento e, armadas de um misto de coragem e medo, saltamos e chegamos ao chão. Quase livres!
Encolhidas sob um arbusto que havia perto da parede, tiramos nossas roupas claras e nos lambuzamos de areia e lama para que nossos corpos branquelos ficassem escuros e mais difíceis de detectar pelos faróis dos Vigs. Esperamos, imóveis e caladas, até a hora morta, e concluímos que ninguém nos havia detectado. Saímos correndo agachadas, como animaizinhos, e eu nem sentia que um de meus pés tinha sido torcido na queda.
O mais difícil foi encontrar um modo de ultrapassar os altos muros. Por sorte, porém, depois de margeá-los por um tempo, encontramos uma rachadura, colhemos dois galhos de uma árvore ali perto e, por uma hora, cavoucamos a rachadura até abrirmos um pequeno buraco por onde conseguimos escapulir e nos soltar pelo mundo. Ali a magreza adquirida nos ajudou.
Dali por diante, não havia plano, se não o de correr o mais longe que pudéssemos até chegar a um antigo parque abandonado e recoberto de altas árvores que avistávamos, bem longe, de nossas janelas, ali nos esconder, descansar e então pensar no que viria.
Conseguimos! Quase mortas de cansaço, chegamos, enfim, a um lugar de vegetação tão densa e alta que nos deixamos cair sobre as pequenas plantas macias que cercavam as árvores, abrigando-nos entre as grandes raízes de uma delas, que formavam como confortáveis cadeirões, e dormimos, ou melhor, desacordamos. A árvore nos protegeu do sereno e dos ventos e tão exaustas estávamos que só despertamos quando a fome nos incomodou e o dia seguinte já começava a escurecer. Engolimos, com um pouco de água que encontramos acumulada em grandes folhas de uma planta, algumas das cápsulas alimentícias que tínhamos cada dia reservado para essa aventura. Nossos estômagos ainda roncavam insatisfeitos, mas sabíamos que aquilo nos ajudaria a resistir até descobrirmos como nos alimentar na mata.
Encantadas, apesar de um pouco temerosas, aproveitando a escuridão da noite, começamos a explorar o que havia em volta de nossa árvore, mais pelo tato do que pela vista. Era incrível ver e tocar plantas de verdade e não as réplicas artificiais que se supunha que enfeitassem do mesmo modo aqueles cômodos em que antes vivíamos confinadas. Meu pé então começou a doer e me dei conta de que estava estropiado. Sultana, a outra, porém, teve a boa ideia de colher algumas grandes folhas bem frescas e macias, envolver meu pé e meu tornozelo com elas e atá-las com umas cordas naturais que desciam de cima das árvores. Isso aliviou muito minha dor e pude continuar nossa exploração do novo mundo. Começávamos a aprender como viver na Natureza.
Mal percebemos quando o céu começava a clarear e fomos surpreendidas por um milagre: pouco a pouco passamos a ouvir sons extraordinários, parecendo os que nos mostravam através dos comunicadores digitais com o título de “vozes de antigos pássaros”. Havia uma certa semelhança, mas o que estávamos ouvindo era absolutamente maravilhoso, vinha de todos os lados, em vários tons cuja harmonia nunca se repetia. Pouco a pouco, começamos a vê-los à luz do dia que nascia. Eram lindos, de variadas cores, vozes e tamanhos. Também podíamos agora ver bem as plantas que nos cercavam.
Então percebemos que os pássaros estavam buscando frutos da mata para se alimentar. Muitos deles se precipitavam para o que reconhecemos como “antigas bananeiras naturais”, com um cacho de bananas bem maduras, e as bicavam com gosto. Observando os detalhes e raciocinando, achamos que se as bananas naturais não faziam mal a aves tão pequenas, tampouco nos fariam mal. Aproximando-nos delas, os pássaros assustados fugiram. Colhemos uma das bananas ainda inteiras, tentamos puxar-lhe a casca que se abriu para nós suavemente, como se estivesse nos esperando. Cada uma de nós pegou dela, prudentemente, um pedaço bem pequeno para provar. Nunca tínhamos sentido um prazer gustativo como aquele, tão diferente das pílulas, pós e sopas que nos serviam no velho mundo recluso! Uma coisa tão boa não podia nos fazer mal. Perdemos o medo e nos fartamos de bananas.
Depois percebemos como as folhas de bananeira eram amplas, abrigavam bem as frutas e os pássaros debaixo de si e não se desmanchavam ao secarem. Colhemos então as folhas que nos pareceram mais velhas e, com elas e as cordas naturais que pendiam de várias árvores, construímos uma espécie de teto em torno da nossa árvore acolhedora, seu tronco como uma coluna mantendo o conjunto e alguns galhos como estacas segurando as beiradas daquela nossa nova casa! Pronto! Isso não preciso lhe explicar mais, porque você e todas as nossas filhas e filhos vivem em casas semelhantes àquela nossa primeira invenção, apenas muito maiores hoje, mais sólidas e aperfeiçoadas em seus planos e construção. Mantivemos as casas todas assim redondas, porque percebemos que bom era ter uma casa onde só a árvore protetora ocupa um lugar, bem no meio do espaço, mais importante do que os outros, e todos os outros cantos têm a mesma importância, como as pessoas que nelas vivem.
Bem, passamos meses ali, as duas, descobrindo a Natureza e aprendendo como viver felizes e sadias, através das lições recebidas dos animais pequenos e grandes, das plantas, da observação das variações do sol, da lua, das estrelas, das nuvens, dos ventos, das chuvas, das fontes de água, dos sons da mata. Começamos a descobrir como nos alimentar bem, como nos exercitar para ficarmos mais fortes, como apreciar a beleza, como curar feridas, tudo na medida certa, sem exageros, e a confiar no mundo natural que tem sua própria sabedoria. Isso também não preciso explicar-lhe mais, porque é tudo o que você aprende nas nossas casas das perguntas que criamos para promover o crescimento de vocês.
Quando já nós sentíamos bem mais sábias e seguras, começamos a nos arriscar para bem mais longe de nossa casa-árvore, confiando em nossos novos conhecimentos dos movimentos dos astros e das cores, sabores e aromas da Natureza para encontrar o caminho de volta.
E foi aí que tivemos um novo milagre, ainda maior que o milagre dos pássaros! Metendo-nos por uma nova floresta que ainda não conhecíamos, de repente ouvimos algo como se fossem vozes humanas cochichando, percebemos algum movimento num ponto preciso da folhagem e sentimos um cheiro novo. Não era cheiro de planta nem de animal, parecia mais com o cheiro que nossos corpos tinham adquirido desde que saímos de nossas prisões rigorosamente desodorizadas. Era cheiro de gente. Tivemos medo, mas antes que saíssemos correndo dali, vimos aparecer dentre as folhagens pessoas que nunca tínhamos visto antes: eram de pele muito escura e lisa, e tinham cabelos pretos e muito cacheados, e não como os nossos, amarelos e lisos. Perdemos logo o medo quando vimos os seus sorrisos alegres, que brilhavam esplendorosamente naquelas caras quase pretas. Quando demos por nós, já estávamos abraçando e sendo abraçadas por toda aquela gente, muito mais mulheres, todas à frente, e uns poucos homens.
Falavam como nós, e podíamos conversar, embora precisássemos aprender uma enorme quantidade de palavras novas, que eles sabiam e nos ensinavam pacientemente. E soubemos que eles, durante séculos, tinham sido maltratados pelos brancos, muitas vezes se refugiavam em lugares escondidos para se proteger, já muito antes de ser implantado o Sistema de confinamento e programação rigorosa de todos os humanos, e assim não foram encontrados pelos Dirigentes e seus capangas — palavra nova que eles nos ensinaram — e não foram descartados como muitos outros a pretexto de purificar a raça humana, como decidiram os Dirs brancos, que os consideravam inferiores a eles. Inferiores coisa nenhuma! Eram sábios, inteligentíssimos e mais fortes do que nós, além de mais bonitos aos nossos olhos admirados, e nos conduziram até onde viviam suas comunidades chamadas quilombos.
Desse encontro em diante, nossa vida tomou novo impulso e novo rumo. Eles nos levaram a conhecer outras comunidades humanas que também haviam escapado da perseguição do Sistema. Então conhecemos outro povo que tinha cabelos também pretos, mas muito lisos, os olhos bem puxados, e a pele mais escura e avermelhada do que a nossa, mas não preta como a dos primeiros amigos. Entre eles, também havia muito mais mulheres que homens, e eram elas que comandavam tudo. Com elas, as duas Sultanas aprendemos a compreender os ritmos da Natureza, que está sempre em mudança, as estações do ano que não conhecíamos — pois as prisões tecnológicas onde tínhamos nascido e crescido eram feitas para permanecer iguais o tempo todo —, a aproveitar melhor tudo o que a Natureza nos oferecia. Aprendemos a tecer cestos e redes de dormir com as palhas, a fazer potes e pratos de barro bem seco e endurecido ao sol, a colher e fazer secar as frutas frescas que não podíamos comer todas de uma vez, para aproveitá-las enquanto não chegasse uma nova safra. Enfim, ensinaram-nos tudo o que hoje sabemos e mostramos a vocês, para que tenhamos o necessário na medida certa, sem desperdícios, e sejamos felizes e alegres como somos agora.
A descoberta da vida bela e pacífica que tinham todas essas pessoas começou a nos fazer pensar não mais somente em nós duas, Sultana.04 e Sultana.08, mas em todas as demais Sultanas, Suelys, Susanas, e também nas Zulmiras, Zenaides, Zenóbias, ou nas Dolores, Doras, Dulces, Anelises, Análias, Anas, Anaídes, Antônias, Andressas e por aí afora, até sentirmos que todas as pessoas humanas deviam ter o direito de viver livres e felizes como nós estávamos nos tornando.
Vivíamos procurando mais conhecimentos para descobrir um jeito de começar a libertar as trancafiadas.
Como fazíamos muitas vezes, um dia nós duas, mais um grupo de jovens mulheres pretas e vermelhas, decidimos atravessar à noite pelas ruas controladas, para chegar ao outro parque abandonado que sabíamos existir para o lado onde o sol se põe. Com muito cuidado e guiadas pelas mais experientes do mundo livre, conseguimos chegar ao outro parque bem antes do alvorecer.
Você acredita que nos aconteceu mais um milagre? Pois lá, no meio do mato crescido nesse outro parque, chegamos ao que parecia ser um antigo prédio abandonado e em ruínas. Ficamos todas muito curiosas para saber o que havia lá dentro. As mais espertas e fortes foram na frente, batendo com estacas de madeira em cada pedra, em cada chão e parede para certificar-se de que não havia perigo de caírem sobre nós. Acabamos por entrar e explorar todo o interior daquilo tudo que era imenso. Adivinhe o que foi que encontramos lá dentro?
— Eu sei! Os livros!
— Isso, menininha sabida! Havia milhares de livros, com as letras que nós tínhamos aprendido a ler apenas nos comunicadores digitais, agora impressas em papéis formando blocos, os livros, que nunca tínhamos visto. Além disso, encontramos uma grande sala cheia de antigos comunicadores, que soubemos depois que eram chamados de computadores e celulares, bem mais simples de compreender e montar dos que nossos comunicadores controlados pelos Ordenantes.
Para resumir, passamos alguns meses indo e vindo entre os dois parques, juntas, pretas, vermelhas e branquelas, como nos dizíamos, construindo novas casárvores no Parque do Poente, e distribuindo os livros entre nossas comunidades, a do Poente e a da Ponta do Cruzeiro. A mesma coisa fizemos com as peças e restos dos computadores e celulares, para tentar criar um novo instrumento para nossos planos de libertar mais gente. Então, para nos libertar de vez da dominação que havíamos sofrido, as duas Sultanas decidimos esquecer nossos números e passamos a nos distinguir por nomes de flores: Sultana Rosa, Sultana Hortência e todas as demais Sultanas, ou Zenaides, ou Andressas-flores que você conhece muito bem.
Nós duas, as primeiras, passávamos nosso tempo a estudar os livros, com tantas palavras que não conhecíamos. Por sorte, na antiga biblioteca havia uma grande quantidade e variedade de dicionários e assim íamos ampliando nosso vocabulário e nossos conhecimentos. Com isso, conseguimos compreender como combinar as peças que tínhamos trazido de nossos comunicadores com as dos computadores e celulares e criar um novo tipo de aparelho que nos serviria quando não fosse possível resolver tudo sem a tecnologia avançada.
Ao mesmo tempo, alfabetizávamos nossas companheiras pretas e vermelhas para que também pudessem aproveitar os conhecimentos dos livros.
Em pouco tempo estávamos todas metidas nas pesquisas, descobrimos muitas coisas novas, fizemos muitas assembleias de mulheres para discutir os benefícios e malefícios possíveis de tudo aquilo, e logo tomamos a decisão de que viveríamos preferencialmente dependentes da Natureza, em harmonia permanente com todo o universo, e só utilizaríamos a tecnologia aprendida para resolver problemas bem específicos que não tivessem outra solução melhor para nossa vida.
Foi assim, com nossos novos-velhos comunicadores — que não estavam registrados e, portanto, não eram vigiados pelos Ords —, que identificamos, contatamos e organizamos as fugas de tantas outras mulheres desviantes de todas as categorias do Mundo-Prisão e as trouxemos para o Mundo-Parque, fazendo crescer muito nossas comunidades multicores.
Como as mulheres livres já tinham descoberto e nos ensinaram, era claro que o Mundo-Parque deveria ser governado por mulheres. Elas já eram a maioria, justamente porque a maior parte dos homens tinha sido apanhada e assassinada pelos agentes encarregados de implantar o Sistema. Acontecera assim porque os homens não têm juízo, se acham os fortões e valentões, e se meteram a brigar com a outra parte sem pensar em todos os aspectos da situação. Só são capazes de pensar numa coisa de cada vez, ficam focados naquilo e não observam nem analisam ao mesmo tempo todos os lados de um problema. Só cabeça de mulher é capaz de pensar em várias coisas ao mesmo tempo, nós reparamos nos detalhes e tratamos de achar soluções novas para nossa vida, de todos, mulheres e homens, crianças, adultos e velhos.
Entre os povos das florestas, haviam sobrado aqueles poucos homens que eram fisicamente mais fracos e menos metidos a valentões, acostumados a voltar logo para casa, a se esconder por trás das saias das mulheres e a depender delas para tudo o que não fosse só pancadaria. Assim, tinham permanecido aqueles mais dóceis e obedientes, aos poucos aprendendo com as mulheres a realizar outras tarefas necessárias à manutenção da vida cotidiana e sempre seguindo a liderança delas.
Não que os machos fossem considerados inúteis, ao contrário, pois o povo colorido queria continuar existindo e para isso precisava ter filhos, netos e perpetuar sua descendência. É claro que preferiam fazer isso de maneira natural e não dentro de provetas em laboratórios. Para ter filhos com o método da Natureza, para nós e muitas outras espécies de vida, é necessário a contribuição de um macho e uma fêmea, mas isso não significa que eles devem mandar só por serem em geral mais altos e terem músculos mais desenvolvidos que os das mulheres. Para governar bem e fazer um povo feliz, o que conta não são os músculos e ossos e sim o cérebro. Cérebro as mulheres têm de sobra!
Por isso tudo foi que primeiro começamos a libertar e trazer as mulheres do Mundo-Prisão. Até que as assembleias das mulheres foram vendo que era importante buscarmos uma total variedade de pessoas, que todas as pessoas humanas devem ter os mesmos direitos, independentemente de seu gênero, cada uma com seus limites e suas qualidades, porque assim sempre precisaríamos umas das outras e permaneceríamos unidas e felizes.
Depois de muita conversa, acabamos achando que tinham razão aquelas que defendiam a necessidade de libertar também homens brancos — que agora, você bem sabe, chamamos apenas de varões. Homem é o nome da nossa espécie e não de um dos gêneros. Até na Bíblia que encontramos na biblioteca está escrito que Deus criou o Homem, mulher e varão os criou. Também criou a espécie Onça, onça-fêmea e onça-macho, sabiá-fêmea e sabiá-macho, andorinha-fêmea e andorinha-macho… e por aí vai. Você já entendeu isso muito bem.
Foi assim que começamos a libertar também nossos irmãos, os Nathans, Natanaéis e Nabucos, ou Nivaldos, Nicolaus e Nilos, ou Paulos, Patrícios, Pascoais… etc., etc. Que você conhece como Nathan Papagaio, Nathan Bem-te-vi, Patrício Rouxinol e assim por diante!
Assim foi que conseguimos criar esse Mundo-Parque tão bonito e feliz em que você nasceu, vai crescer ainda muito e vai ajudar a manter o poder das assembleias democráticas das mulheres para garantir por muitos séculos a vida e a felicidade de toda a nossa gente!
Agora estou cansada e começando a bocejar. Preciso dormir e já lhe contei a história toda. Se depois quiser mais detalhes, já sabe…
— Sei! Tenho de começar sempre com novas perguntas, pois elas é que abrem o caminho para qualquer conhecimento útil: De nada servem respostas para perguntas que ainda não foram feitas!
***
Será que ouvi mesmo, ou até participei dessa conversa toda? Está tudo escuro e a única certeza que tenho é a que me dá o meu corpo: estou escarrapachada — palavra nova e divertida que recuperei de um antigo dicionário —, confortavelmente escarrapachada num cadeirão macio e fresco, sentindo-me na fronteira entre o sonho e a realidade. Não sei bem de mais nada…