Poemas de Leandro Jardim

Leia os poemas "Céu à mesa", "Mundo alienado de mim", "A outra face", "Queremos?", "Um prédio que some", "sabe o que te dizem?" e "Tampouco"
O poeta carioca Leandro Jardim
27/03/2016

Céu à mesa

A cabeça erguida
e um entorno de construções
de baixas estaturas
nos dá dimensão
da altura do céu

(devolve-o à cidade,
como um entre nós).
Nos apresenta também
suas textura e idade.

Ser de humores que é,
está mais pálido hoje,
embora cinza eu o veja.
Um velho à beira da noite.

Faço, então, um convite
pra que se sente comigo.
Temos climas parecidos.

Ofereço uma cerveja,
mas ele prefere um vinho.
Eu pago, logo. E calo,
me basta ouvi-lo.

Entretanto, ele sussurra
em ventos de volume tão baixo,
e chora lágrimas tão serenas,
— ainda que frias —
que não o ouço.

Mas é por isso que me comovo.

…..

Mundo alienado de mim

És a gaivota que canta
A natureza alheia das coisas

E o edifício de concreto
Erguido noutro século

És o silêncio das árvores
Acomodadas ao vento

E o passo dos velhinhos
Veloz através do tempo

És o frio imperceptível
No audível murmúrio de tudo

E o mais que ainda me escondes
Mundo alienado de mim

És a sombra no chão que esquenta
E o esquecimento acima de tudo

O choro do meu filho
E alguma paz que surpreende

És o trigo a negar o joio
E o joio a despeito disso

O poema que atravessa
O que nunca se pensou

O que mais ainda me escondes
Mundo alienado de mim?

Esquecido da minha existência
Não sabes, mundo, quem eu sou

É daí que não me exiges glória
E me liberto de tua vã regência

Não me obrigas mais à gravidade
Nem à consciência sã da finitude

E daí me faço todo o resto
Das coisas que também não percebes

Me torno a fala do objeto inanimado
A vida das ideias jamais postas em papel

A ruidosa ausência do estrondo
E a chama no oceano profundo eu sou

Me pode um chapéu vestir o ventre
E dele saberei parir a soma equívoca

Serei, pois, tudo que de ti escapa
Mundo alienado de mim

Serei, pois, tudo que em ti não se entende
Mundo alienado de mim

E o que mais ainda assim me escondes
Mundo alienado de mim

…..

A outra face

Eu sou a face
Face à face
Da vitória
Mas sou derrota e liberdade
Autonomia
Em meio à farra de excluídos
Eu me incluí
Do feto à foice
Ou pelo instante de uma festa
Onde encarei
Frente a frente
O rosto maleável
E severo da verdade

Que me mentiu solenemente.

…..

Queremos?

Ensinam-nos
A nos perguntar
A nós mesmos
E sobre nós:

Queremos
Realmente
Isso? É isso
Realmente o que
Queremos?

E talvez riam
Ou torçam por
Nós ou por suas
Preventividades

Mas querem
Realmente
Isso? É isso
Realmente o que
Querem?

Prevenir-nos
Confirmar-se
Confinar-nos
Ao que não passe?

Ou que não cesse
E que pelo não
Se tome, como
A uma prece?

Queremos
Realmente
Isso? É isso
Realmente o que
Queremos?

Apartar-nos
Do que não vemos
Só porque não
Sabemo-nos

A nós, nem
A nosso futuro
Ou passado, tiram-nos
até o que é

Mas querem
Realmente
Isso? É isso
Realmente o que
Querem?

De nós, para
Nós, por nós,
Dos nossos
Nós e sóis?

A sós ou em
Dois ou mais
Ou além, depois
Do que já se foi?

Talvez

Queiramos
Inevitavelmente
Isso. Isso
De sabermos
O (que) queremos.

…..

Um prédio que some

Um prédio que some
Quase em curva
Por trás de outro prédio
Como se dobrasse
A esquina
Quase em fuga

Um edifício partindo
Com suas toneladas
De concreto decorado
E fundações profundas
Que aponta para o longe
Aponta um horizonte
Que ele mesmo esconde

Um amontoado em si
De residências fixas
Com a leveza de uma criança
Que amadurece
Sem perceber
E cresce para o distante
Noutro lugar

Uma construção singular
Como essa — pelo menos
Desse ponto
De vista —
Nos fala muito pouco
Estática, exibe apenas
Uma beleza daquelas
Tão belas
Que não se entende como pode

…..

Janelas de Copacabana

Uma flor de plástico
Em que pela distância
Eu vi um leitor
Sua figura atenta e debruçada
Sobre a escrivaninha
Sem nunca virar uma página

E mais abaixo o cão
Sua cabeça triangular
Que se movimentava
Num jeito alegre-afoito
Indo e vindo tanto
Que se revelou um ferro
Passando roupa pela manhã

Havia outros enfeites estáticos
E animais menos ariscos
Havia pessoas até
Que se confundiam mais ainda
Com a paisagem

E sob nossos pés passavam
Estrondos e carros
Transeuntes tristezas cigarros
Misérias trabalhos enfados
Que nos enganavam

…..

sabe o que te dizem?

aguenta, te dizem
te dizem: aguenta
e continuam a dizer
é nada, poderia
ser pior, não vê
é fraqueza chorar

aguenta

que passa
o tempo passa
as águas passam
estancam-se feridas
passa a dor, vem outra
é disso a vida
saber aproveitar
o que se tem
e o que é que tem
demais nisso?, perguntam
vaticinam

aguenta, passa

e não responda
isso não dizem
mas sugerem
em silêncio sugerem
não questione, não
rebata ou argumente
sugerem
em silêncio

escuta, aguenta, passa

e nós? nós

escutamos
(podemos gritar
um pouco durante)

e aguentamos
(porque o contrário
é o despedaçar-se
e preferimos seguir
de pé) e de pé

passamos

mas e nós? (nós?

não perguntamos)

…..

Tampouco

Poderia ser pior, te dizem,
poderia
ser bem pior.
Esteja feliz, portanto,
insistem,
seja feliz
(por tanto).

Não é o pior, isso,
vê, nem mesmo
é piorzinho. Reconheça,
assim é o mundo,
basta olhar à volta.
Tampouco, claro, é o desejável,
ou confortável isso,
eles sabem.

Mas se não tens
o trágico, regozije-se!
É quase uma festa,
te dizem, a iminência
da tragédia.

Leandro Jardim

É poeta, letrista e compositor. Autor dos livros de poesia Todas as vozes cantam e Peomas. Publicou também a antologia de contos de Rubores.

Rascunho